domingo, 17 de janeiro de 2010



O Triste Fim do Contrato de Trabalho Que Virou Pizza.
zé geraldo


A Segunda Turma do TST decidiu no Recurso de Revista nº 1292/2003-002-03-00.5), relatado pelo ministro José Simpliciano Fernandes, que uma pizzaria pode terceirizar os serviços de entrega de pizza se a entrega das pizzas for sua atividade-meio; se for atividade-fim, não. Deixe-me ver se entendi direitinho: atividade-fim de qualquer sociedade empresária é o bem ou serviço que essa sociedade empresária entrega ao mercado com finalidade lucrativa. Numa palavra, atividade-fim da sociedade empresária é o produto da sua atividade organizada, isto é, do seu elemento de empresa. Uma pizzaria produz pizza. Logo, produzir pizza é sua atividade-fim. O consumidor de uma pizzaria consome pizza, e não alcatra, energéticos, xampu de jaborandi, pneus ou componentes eletrônicos. Logo, para consumir os produtos dessa pizzaria, ou o consumidor vai até a pizza ou a pizza vai até o consumidor. Se o consumidor vai até a pizza, isso não interessa ao direito do trabalho. Trata-se de relação de consumo. Mas, se a pizza vai até o consumidor, o problema passa a ser do interesse do direito do trabalho porque a relação, que era apenas de consumo, passa a ser de trabalho ou de emprego, dependendo do ângulo em que se veja a pizza.Segundo o relator, a entrega das pizzas não tinha característica de atividade-fim da organização, por isso poderia ter sido terceirizada. O ministro levou em conta que das doze filiais da sociedade empresária apenas três se utilizavam de motoqueiros para a entrega das pizzas. Segundo sua ilação, se o delivery fosse realmente essencial à sociedade empresária, isto é, se estivesse de fato ligado à sua atividade-fim, teria sido adotado em todas as filiais, e não em apenas três. Traçando um paralelo absurdo, se eu enfileirar doze homens contra uma parede e metralhar apenas três não haverá crime, pois se fosse realmente minha intenção cometer assassinato eu teria defenestrado os doze, e não apenas três. Na minha opinião, a entrega das pizzas somente poderia ser entendida como atividade-meio das pizzarias se as pizzas pudessem locomover-se sozinhas do forno da pizzaria à mesa do cliente. Fora disso, o delivery é parte essencial do elemento de empresa dessa sociedade empresária e, pois, da sua atividade-fim. O fato de apenas três das doze filiais adotarem o sistema de entrega prova exatamente o contrário do que o ministro quis fazer entender: prova que naquelas três unidades a atividade de entrega das pizzas era tão ou mais necessária que nas outras nove, o que não autoriza concluir que nas outras nove não fosse necessária ou útil, mas apenas que não eram utilizadas por razões de engenharia interna, seja em razão da melhor localização, do acesso fácil, da clientela já acostumada a ir até o estabelecimento ou seja lá por que razões sejam. Não há atividade-meio nisso, data venia.Como dito, a atividade-fim de qualquer pizzaria é fazer pizza e entregá-la ao cliente, pouco importando se o cliente vai até a pizza ou a pizza vai até o cliente. É absolutamente irrelevante o fato de os motoqueiros integrarem uma “cooperativa”. Será mesmo que se tratava de uma cooperativa autêntica? Não seria, por acaso, uma “fraudoperativa”? O que é uma cooperativa autêntica? Não li o voto do ministro, desconheço seus argumentos(que suponho sérios e atentos aos autos), mas posso dizer o que sei sobre cooperativas, e que já registrei em diversos artigos de doutrina que circulam por aí, alguns até sem que me citem como fonte ou deem o crédito que, segundo a lei de propriedade intelectual, me pertence. O cooperativismo teve origem no século XIX, primeiro na Inglaterra e depois na Suíça, Alemanha e França, a partir das ideias do inglês Robert Owen (1771-1858), a quem a doutrina autorizada credita a primazia da idealização do movimento e a criação dos seus princípios fundamentais.Some-se a isso um cenário propício, desenhado pelos movimentos de trabalhadores, agrupados por solidariedade, com intuito único de preservar a propriedade privada sem submissão à intervenção direta do Estado. O princípio fundamental do cooperativismo é a ajuda mútua e o trabalho solidário, sem intuito de lucro. OWEN acreditava que o homem é um produto do meio social. Combateu o lucro e a concorrência e despertou nos trabalhadores o interesse pelo trabalho compartilhado e o uso comum das riquezas naturais. Em 1852, surgiu na Inglaterra o The Industrial and Provident Societes Act, primeira lei regulamentando o funcionamento de uma cooperativa. A partir daí, o ideal cooperativista foi tomando forma e se espalhou pela Europa. No Brasil, a primeira cooperativa organizada foi a Associação Cooperativa dos Empregados da Companhia Telefônica de Limeira, depois a Cooperativa Militar de Consumo e a Cooperativa do Proletariado Industrial de Camaragibe.No plano legislativo, os primeiros diplomas regulando cooperativas foram o Decreto nº 796, de 2/10/1890, o Decreto nº 869,de 17/10/1890,o Decreto Legislativo nº 979,de 6/1/1903,a L.nº 1.637,de 5/1/1907 e o D.nº 22.239,de 19/12/1932. Modernamente, regula as cooperativas a L.nº 5.764/71. No ponto em que interessa ao direito do trabalho, a polêmica fica por conta da L.nº 8.949/94, que, ao dar nova redação ao parágrafo único do art. 442 da CLT, estabeleceu que “qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela”.Segundo a Aliança Cooperativa Internacional(ACI),considera-se cooperativa, qualquer que seja a sua constituição, "toda associação de pessoas que tenha por fim a melhoria econômica e social de seus membros pela exploração de uma empresa baseada na ajuda mútua e que observe os princípios de Rochdale". A doutrina também conceitua a cooperativa como um "sistema de organização econômica que visa a eliminar desajustamentos sociais oriundos dos excessos de intermediação capitalista" , "uma forma de união de esforços coordenados para a consecução de determinado fim" ou a "associação voluntária de pessoas que contribuem com seu esforço pessoal ou suas economias,a fim de obter para si,as vantagens que o agrupamento possa propiciar".Segundo o pranteado  VALENTIN CARRION, “cooperativa de trabalho ou de serviços nasce da vontade de seus membros, todos autônomos e que assim continuam. As tarefas são distribuídas com igualdade de oportunidades; repartem-se os ganhos proporcionalmente ao esforço de cada um. Pode haver até direção de algum deles, mas não existe patrão nem alguém que se assemelhe; a clientela é diversificada; a fixação de um operário em um dos clientes, pela continuidade da subordinação,e a perda da diversidade da clientela descaracterizam a cooperativa”.Para o art.3º da L.nº 5.764/71, "celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica,de proveito comum,sem objetivo de lucro".Diferentemente das demais sociedades,a cooperativa é uma sociedade de pessoas, e não de capital.É o que se lê do art. 4º da L. nº 5.764/71: "As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil,não sujeitas à falência,constituídas para prestar serviços aos associados,distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:

I-adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo a impossibilidade técnica de prestação de serviços;
II-variabilidade do capital social, representado por quotas-partes;
III-limitação do número de quotas-partes do capital para cada associado, facultado,porém,o estabelecimento de critérios de proporcionalidade,se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais;
IV-incessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à sociedade;
V-singularidade de voto, podendo as cooperativas centrais, federações e confederações de cooperativas, com exceção das que exerçam atividade de crédito,optar pelo critério da proporcionalidade;
VI-quorum para o funcionamento e deliberação da Assembleia Geral baseado no número de associados e não no capital;
VII-retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembleias Geral;
VIII-indivisibilidade dos Fundos de Reserva e de assistência técnica, educacional e social;
IX-neutralidade política e indiscriminação religiosa,racial e social;
X-prestação de assistência aos associados, e,quando prevista nos estatutos,aos empregados da cooperativa;
XI-área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, controle,operações e prestação de serviços".

Ou seja: a cooperativas têm natureza jurídica própria, distinta da das demais sociedades, são sociedades de pessoas(formadas por pessoas) e não de capital,de natureza civil,não sujeitas a falência. Sujeitam-se, entanto, à liquidação judicial ou extrajudicial. É uma sociedade sem lucro. O seu faturamento e as despesas são divididos entre os associados, observando-se a proporcionalidade da produção de cada associado. A cooperativa adquire personalidade jurídica com o depósito dos seus atos constitutivos no registro do comércio.

Há, basicamente, três tipos de cooperativa:de crédito,de consumo e de trabalho(ou produção).Tanto quanto as demais,as cooperativas de trabalho são sociedades civis,uma associação de pessoas que “...têm por fim a melhoria econômica e social de seus membros,através da exploração de uma empresa sobre a base de ajuda mútua e que observe os princípios de Rochdale”. A essência da cooperativa reside na abolição do lucro. As cooperativas deveriam praticar o justo preço, isto é, os preços desindexados dos acréscimos artificiais que encarecem bens e serviços. Ao se colocarem entre os produtores de bens e serviços e os consumidores desses mesmos bens e serviços eliminariam o intermediário que acrescia o seu lucro ao preço original. Como as cooperativas praticam o preço de mercado e nesse já está a margem de lucro, somente há cooperativismo autêntico se a cooperativa promove o retorno do excedente ,isto é, ”...o excesso de receita obtido ao fim do exercício. Esse excesso, que no sistema cooperativo é considerado como sobras,permite à sociedade que dele deduza uma parte para seus fundos de reserva,de assistência social,de educação etc.,consolidando e fazendo crescer a entidade e aparelhando-a assim para melhor prestar serviços aos associados. O saldo é então distribuído entre os associados de uma forma altamente justa e engenhosa;nas cooperativas de consumo,devolve-se o que a cooperativa teria cobrado a mais no preço,portanto resultando numa baixa de preço “a posteriori”,e tornando ao cooperado aquilo que ele despendeu a mais,na aquisição do produto fornecido pela cooperativa;nas cooperativas de produtores,com a devolução integra-se o preço justo pelo qual deveria ter sido vendida a produção entregue pelo cooperado,decorrendo assim uma alta de preço “a posteriori”,e completando o cooperado aquilo que ele deveria ter recebido pela sua produção;nas cooperativas de produção e de trabalho,da mesma forma,pelo retorno complementa-se o preço do seu trabalho,revertendo a ele o que,sem a cooperativa,ficaria nas mãos do empresário”.

Dos três tipos de cooperativa, o único que desperta interesse direto ao direito do trabalho é a cooperativa de trabalho. Cooperativas de trabalho são organizações formadas por pessoas físicas, de uma ou várias profissões, que exercitam um ofício ou uma profissão com a finalidade de melhorar a condição econômica e as condições gerais de trabalho de seus associados, sem vinculação a qualquer patrão ou empresário, repartindo os lucros e decidindo de forma democrática e equitativa os destinos dessa organização. Em síntese: na cooperativa de trabalho se tem em mente afastar a figura do empregador, abolir o lucro e obter a melhoria das condições econômicas e sociais dos associados. Nos Congressos de Paris(1937),Viena(1966) e Manchester(1995) foram assentados os 7(sete)princípios fundamentais do cooperativismo. Para que haja, efetivamente, uma cooperativa lícita de trabalho, e não uma sociedade civil interposta à relação de emprego, a cooperativa precisa observar esses princípios( adesão livre e voluntária, controle democrático pelos sócios,participação econômica dos sócios,autonomia e independência,educação, treinamento e informação,cooperação entre cooperativas e preocupação com a comunidade). Abstraída a subordinação jurídica, elemento indispensável à configuração do vínculo de emprego, e obviamente inexistente na relação cooperativa, todos os demais requisitos configuradores do contrato de trabalho também se acham presentes na relação entre o cooperativado e sua cooperativa ou entre o cooperativado e o tomador dos serviços da cooperativa (pessoalidade, habitualidade, onerosidade).Tenho lido e ouvido dizer que tal e qual cooperativa é irregular ou ilegal, mas quase ninguém diz, com precisão, que elementos devem ser levados em conta no exame de cada caso em concreto para se saber se se está diante de cooperativa autêntica ou, como dizem, de uma fraudoperativa. Na prática, é difícil saber até que ponto uma cooperativa é autêntica e a partir de quando passa a operar na clandestinidade. A regra do parágrafo único do art.442 da CLT (quando exclui o vínculo de emprego entre o cooperativado e a cooperativa e entre o cooperativado e os tomadores de serviço da cooperativa) somente se aplica àquelas cooperativas autênticas, organizadas de forma lícita, e que concorrem,efetivamente,para o aumento dos postos de trabalho.Pela Portaria nº MT/GM nº 925, de 28/9/95, o Ministério do Trabalho determinou aos seus agentes fiscalizadores, o seguinte:“Art.1º -O agente da Inspeção do Trabalho, quando da fiscalização na empresa tomadora de serviços de sociedade cooperativa, no meio urbano ou rural, procederá a levantamento físico objetivando detectar a existência dos requisitos da relação de emprego entre a empresa tomadora e os cooperados nos termos do art.3º da CLT.§1º - Presentes os requisitos do art.3º da CLT, ensejará a lavratura de auto de infração;§2º - Sem prejuízo no disposto neste artigo e seu §1º, o Agente de Inspeção do Trabalho verificará junto à sociedade cooperativa se a mesma se enquadra no regime jurídico estabelecido pela L.nº 5.674, de 16 de dezembro de 1971, mediante análise das seguintes características:

a)- número mínimo de vinte associados;
b)-capital variável, representado por quota-parte, para cada associado, inacessíveis a terceiros, estranhos à sociedade;
c)-limitação do número de quotas-partes para cada associado;
d)-singularidade de voto, podendo as cooperativas centrais, federações e confederações de cooperativas, exceção feita às de crédito, optar pelo critério de proporcionalidade;
e)-quorum para as assembleias, baseado no número de associados e não no capital;
f)- retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado;
g)-prestação de assistência ao associado;
h)- fornecimento de serviços a terceiros atendendo a seus objetivos sociais".

Para ser uma cooperativa autêntica, e não uma atravessadora de mão de obra,a cooperativa precisa atender a todos os 7 princípios básicos a que a doutrina alude. Vejamos um a um:

Adesão livre e voluntária

Em primeiro lugar, a adesão do cooperativado deve ser livre e voluntária. Isso afasta, de imediato, o monopólio de uma categoria profissional sobre o exercício de determinada atividade cooperativista. É possível que faxineiros, merendeiras, auxiliares de hospitais, vigias, motoristas, datilógrafos etc se associem em cooperativas por identidade de profissão,mas não podem impedir que qualquer outro trabalhador,ainda que não pertença a nenhuma dessas categoriais,ou que não detenha a técnica do mesmo ofício se associe a essa cooperativa. A exigência de adesão voluntária também põe em flagrante clandestinidade certas cooperativas formadas a partir da reunião, compulsória ou não, de toda uma ala, unidade ou setor de serviços de uma determinada empresa, escola ou hospital .Se a empresa, escola ou hospital decide romper os contratos de trabalho de seus empregados mantidos até então e “sugere”que continuem prestando os mesmos serviços,em regime de cooperativa,sem qualquer alteração de local de trabalho,horários,salários,o que faz,na verdade,é fraudar os direitos trabalhistas, alijando os empregados do amparo da CLT.

Controle democrático pelos sócios

Em segundo lugar, para que haja cooperativa autêntica, os sócios têm de ter controle democrático da cooperativa, participando, efetivamente, das decisões que definam a sua política de atuação e a destinação dos seus recursos. Ainda aqui, refiro-me à minha experiência prática: o que vejo no dia a dia dos processos é o “sócio” da cooperativa inteiramente alienado das decisões que definem o rumo da entidade. Embora tenham, nominalmente, paridade de voto (um sócio,um voto),na prática, sequer comparecem às reuniões onde se tomam as decisões,ou,se comparecem,não votam,porque não se lhes dá o direito ao uso da palavra ou simplesmente porque sequer sabem que têm direito a voto. Ou (e isso é o pior que pode ocorrer),então,as reuniões são feitas pela “diretoria”,a portas fechadas, ou sem aviso prévio,ou sem qualquer divulgação,ou no horário do expediente dos “cooperativados” junto aos tomadores dos serviços,que não permitem a ausência ao trabalho para prestigiar essas reuniões,ou,ainda,porque essas reuniões se realizam fora da sede(se houver uma...)da cooperativa e até mesmo na sede da cooperativa...que se situa em outro Estado!

Participação econômica dos sócios

Em terceiro lugar, o cooperativismo autêntico exige participação econômica dos sócios. Os sócios da cooperativa devem contribuir de forma equitativa na formação do capital social da entidade. Não basta entrar para a sociedade apenas com o depósito da “taxa de adesão”(que,em rigor,não ocorre,pois essa taxa não é integralizada; em regra, o associado nada despende;assina,apenas,um termo,onde se diz que integraliza a “quota”,ou promete integralizá-la,mas nem uma nem outra hipótese de fato ocorre).Feita essa “integralização” inicial, o sócio se comporta no dia a dia da cooperativa como autêntico empregado, pois não contribui, mês a mês, para com os cofres da cooperativa e limita-se a receber um salário fixo. Essa circunstância(invariabilidade de salários de acordo com o fluxo de caixa e com o volume dos serviços contratados pela cooperativa e executados pelo sócio)bem demonstra o completo afastamento dessa relação do ideal cooperativista. Na cooperativa, o sócio recebe a retribuição na proporção exata dos serviços que produz para a cooperativa, e esta reparte entre os sócios todas as sobras advindas da contratação dos serviços dos associados por terceiros, clientes da cooperativa. Se, independentemente do volume de sua produção, o sócio recebe pagamento fixo, tarifado pela diretoria da entidade para todos os cooperativados em igualdade de condições, é claro que de cooperativa não se trata. Da mesma forma, se a cooperativa presta serviços a um único cliente, ou a vários clientes, mas não divide as sobras com os associados, na proporção da produção de cada cooperativado, ainda uma vez não se está diante de uma cooperativa autêntica,mas de uma sociedade comercial que,sob o rótulo de sociedade civil,se mete entre o prestador do serviço e o tomador,tipificando a marchandage(tráfico de gente salariada).A prestação de serviços pela cooperativa a um único cliente ou tomador, com exclusividade, traduz dirigismo contratual incompatível com a natureza da cooperativa.

Autonomia e independência

Também se exige de uma cooperativa autêntica autonomia e independência. Cooperativas são organizações civis autônomas para ajuda mútua; o controle é feito, exclusivamente,por seus membros.Se a cooperativa é criada não pela adesão espontânea de seus membros, mas por um burocrata, após o desmonte de um setor de produção(como a enfermaria de um hospital,a cozinha ou a faxina de uma escola,o pessoal da venda de seguros de uma corretora,o pessoal da digitação de um setor de informática etc),é óbvio que essa cooperativa está servindo ao tráfico de gente salariada e à burla da legislação trabalhista. O fato de os “cooperativados” prestarem serviços exclusivamente ao órgão do qual são egressos é mais um indício de que, primeiro, não aderiram espontaneamente e, segundo,não têm nenhuma autonomia ou independência. Nessas cooperativas, criadas para gerir empregos, o volume da produção, o controle dos horários, as quantias pagas são previamente fixados por quem as instituiu.

Educação, treinamento e informação

A cooperativa deve, também, para cumprir o seu desiderato, propiciar aos seus membros educação, treinamento e informação. Em regra, os “cooperativados” nem sabem o que é uma cooperativa, porque aderiram a uma, quais os seus direitos e deveres. Até onde tenho visto em processos, nunca uma cooperativa se preocupou em fornecer a um membro seu educação, informação ou treinamento. Ao contrário. A “cooperativa” é fundada na calada da noite para dar continuidade a um tipo de serviço ou atividade que já existia, mas que a empresa preferiu desativar, ou para substituir a uma outra “cooperativa”semelhante, que deixou de prestar o serviço por desinteresse próprio,perda de licitação para outra “cooperativa”ou desmando do ente tomador do serviço(que,em regra,pretendia pôr no lugar uma outra “cooperativa”que lhe rendesse algum bônus direto...).Nesses casos, a cooperativa nasce da reunião compulsória dos empregados de um setor, ou unidade, que continuam a prestar os mesmos serviços antes prestados ao próprio tomador ou ao tomador através de outra “cooperativa” .Houve, apenas, alteração de patrão, com o enfraquecimento do empregado pela incerteza da garantia dos direitos trabalhistas.

Cooperação entre cooperativas

A cooperativa verdadeira tem, entre as suas obrigações ontogênicas, de cooperar com outras cooperativas. Isso lhes dá, em tese, maior higidez e lhes permite fortalecer o movimento cooperativo.Na prática, as cooperativas concorrem entre si e uma somente passa a executar os serviços do tomador após a saída da cooperativa antiga, por desmando ou por perda de concorrência. Não há, efetivamente, nenhum tipo de cooperação. Em regra, as cooperativas são usadas como interpostas pessoas jurídicas para preenchimento de quadros de pessoal em órgãos públicos municipais, estaduais ou federais que, por qualquer motivo, não podem ou não querem contratar pessoal mediante concurso público. A disputa pelo monopólio do trabalho ilícito afasta as cooperativas do ideal previsto no 6º princípio consagrado pela Aliança Cooperativa Internacional nos Congressos de Paris(1937),Viena(1966) e Manchester(1995).

Preocupação com a comunidade

Por fim, para que não se esteja diante de fraude oficializada, em evidente prejuízo do empregado, é preciso que a cooperativa tenha sincera e eficiente preocupação com a comunidade. Segundo a doutrina,”as cooperativas trabalham pelo desenvolvimento sustentável de suas comunidades,através de políticas aprovadas por seus membros”.Na prática,o que se vê é nenhuma preocupação da cooperativa com a comunidade onde atua. Não há, que se saiba, qualquer política voltada à comunidade. Os ditos “cooperativados” querem, na verdade, preservar o seu emprego.

Contrato de trabalho

O art.442 da CLT define contrato individual de trabalho como o acordo tácito, ou expresso, correspondente à relação de emprego. No contrato expresso, as partes decididamente querem firmar uma relação de emprego e combinam essa relação verbalmente ou por escrito. No contrato tácito de trabalho, as partes nem sempre querem a formação do vínculo de emprego, mas se conduzem nas suas relações de tal forma que, independentemente de sua vontade,a lei define,antecipadamente,esse tipo de relação como sendo de emprego. O parágrafo único do art. 442 da CLT, com a redação da L.nº 8.949, de 9/12/94, diz que “qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa,não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados,nem entre estes e os tomadores de serviços daquela”. Essa redação, trazida pela L.nº 8.949/94, é semelhante à que já constava do art. 90 da L.nº 5.764, de 16/12/71.Sua constitucionalidade é duvidosa. É presunção comum, favorável ao empregado, que todo trabalho salariado decorre de contrato de trabalho. Não há contrato de trabalho sem subordinação jurídica. Contrato de trabalho é o acordo tácito ou expresso que correspondente à relação de emprego. Segundo a doutrina, essa definição é tautológica. ANTONIO LAMARCA diz que relação de emprego e contrato individual de trabalho são a mesma coisa. O contrato de trabalho é de atividade. Não tem conteúdo específico e resume uma obrigação de fazer. Para GHIDINI, é um negócio jurídico por meio do qual um sujeito (trabalhador) se obriga a prestar a própria atividade laboral a outro, sob subordinação e mediante pagamento. Sendo expresso, pode ser escrito ou verbal; podendo ser tácito, a obrigação jurídica deflui de um estado de fato, isto é,as partes se conduzem de tal forma que acabam por amoldar as suas relações recíprocas ao standard que a legislação de antemão define como contrato de trabalho. Não é possível distinguir onde há contrato de trabalho, e, portanto, relação de emprego, sem que se examinem a priori os conceitos de empregador e de empregado . Empregador é a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica,admite,assalaria e dirige a prestação pessoal dos serviços. Empregado é a pessoa física que presta serviços de natureza não eventual ao empregador, sob a dependência deste, e mediante salário.O conceito de empresa não é unívoco. É econômico e não jurídico. Empresa é a atividade empresarial.Por isso se diz que nenhuma modificação na estrutura jurídica da empresa (entendamos: da atividade empresarial) afeta o direito dos empregados.Há relação de emprego, e,pois, contrato de trabalho,sempre que no caso em concreto se fizerem presentes tanto os requisitos dos arts.21 e 31 quanto os do art.442 da CLT.Na doutrina e na jurisprudência é cediço que, negada a prestação do trabalho, ao sedizente empregado incumbe o ônus da prova porque o fato é constitutivo do direito de invocar a proteção normativa e de receber a indenização taxada em lei . Admitida a relação de trabalho, ainda que de forma eventual ou sob o rótulo da autonomia, de representação comercial, de trabalho temporário, de trabalho cooperativo, de estágio, empreitada, obra certa ou sob qualquer modalidade de contrato que não seja o de emprego,qualquer que seja a forma de pagamento, incumbe ao empregador demonstrar que de fato de relação de emprego não se tratava. Não se trata de exigir do réu prova do fato negativo, mas de lhe impor o encargo da prova do fato impeditivo do direito do trabalhador de se ver amparado pela legislação laboral em decorrência do contrato de trabalho que de antemão se presume existente. Conquanto se trate de uma presunção relativa, ao empregado basta demonstrar o fato objetivo, isto é,a prestação efetiva do serviço,para que se imponha ao empresário a prova de que o consórcio se travara por qualquer das outras formas lícitas de comércio que não tipificam relação de emprego.Por todos esses argumentos, se uma cooperativa não satisfizer a todos os sete princípios de Rochdale, na verdade está traficando gente. “Marchandage”, como dizem os franceses. É, na verdade, uma “fraudoperativa”. Aqui, vale a máxima de Francesco Carnellutti: “quando o Direito se esquece da sociedade, a sociedade se esquece do Direito”. Toda vez que a Justiça do Trabalho despreza uma evidência, o “caixa dois” agradece...
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1.O autor é Juiz do Trabalho, membro efetivo da 7ª Turma do TRT/RJ, Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP, mestrando em Direito Processual Civil pela Universidade Federal Fluminense — UFF — e Escola da Magistratura do Trabalho do Rio de Janeiro — EMATRA—, Membro da Comissão de Jurisprudência do TRT/RJ, Presidente do Conselho Consultivo da Escola de Capacitação de Funcionários do TRT/RJ — ESACS —, membro do Conselho Pedagógico da Escola Superior de Advocacia Trabalhista de Niterói — ESAT —, professor universitário e de cursos preparatórios para concursos públicos, membro de bancas examinadoras de concurso de ingresso na Magistratura do Trabalho, autor de livros e de  de artigos jurídicos publicados no Brasil e na Itália(www.diritto.i).
2.A ilustração do texto está em http://myllavieira.zip.net/images/Pizzaiolo.jpg.
3.A foto do autor é de autoria de Rafaela.