terça-feira, 26 de janeiro de 2010




O mico!
                       zé geraldo



Eu matei meu pai a facadas, no Plenário do Tribunal, e isso muito me constrangeu. Não pelas facadas, que o crime é impossível porque o morto já estava morto, mas pelo enredo da delinquência, que passo a descrever. Desde logo confesso-me arrependido e invoco legítima defesa. E mais: foi tudo sem querer. Erro de pessoa, dizem os penalistas, ou legítima defesa putativa, que, ao contrário do que supõe o desatento leitor, não tem nada a ver com o fato de você ter tentado esganar aquela vadia que pega todo mundo no condomínio, exceto você. Prossigo: cheguei ao Tribunal por volta das treze e dei de cara com Suas Excelências os Juízes Fulano de Tal ― e assim me refiro a Ele porque aquele incorruptível magistrado gostava do plural majestático “nós, juiz Fulano de Tal ― de óculos escuros, terno preto, cara de bunda. Cara de bunda e terno preto ele sempre usava, mas óculos escuros eram, para mim, glamurosa novidade. Como não usava sunga, supus de imediato que à praia não ia, nem de lá tinha vindo. Trazia o semblante pesado, denso, parecendo carregar grande tristeza interior. Como era juiz muito endinheirado — mas tudo dinheiro honesto, repito —, minha inteligência superior me aconselhou a supor que, ao contrário de nós, juízes de carreira, nunca lhe sobrava mês no fim do salário. Problema de grana não era. Mulheres, dizem, comia todas, e com a libido em dia um homem não podia estar com a cara daquele jeito. Concluí que não era questão libidinosa. Nisso, alguém da casa, cujo nome não me acorre dada a lonjura do acontecido, decidiu quebrar aquele silêncio desconfortoso e pediu uma “questão de ordem”. Queria justificar o porquê de não ter ido ao velório do irmão dos juízes Fulano de Tal, obrado naquela ensolarada manhã: não soubera, a tempo, da perda lastimável, mas lamentava assim mesmo, ainda que isso fosse uma lamentável perda de tempo. Só então percebi o porquê daquela cara de fratura exposta. Falsamente condoídos, os juízes Fulano de Tal receberam de bom grado aqueles pesares protocolares, e continuaram, firmes, na sua falência interior por causa do passamento do brother. Um antigo juiz, já morto, polido e bem-adestrado nessas etiquetas defuntistas, associou-se rapidamente aos votos de pesar do colega que o precedeu, e disse qualquer coisa lá das Sagradas Escrituras ou do Velho Testamento, não vem ao caso. Apatetado, para dar coro à importância do evento ou botar banca de bacana, pedi a palavra e informei aos juízes Fulano de Tal que, tendo também perdido o pai, bem compreendia a dor daquele imaculado coração judicante. O que não me pareceu necessário explicar, porque defunto é defunto, não importando a data de validade, é que meu pai se finara há dez ou doze anos, e não na noite anterior, como ocorrera com o irmão dos juízes Fulano de Tal. Aquele juiz polido, que se associara aos pesares do primeiro, retomou a palavra e, tendo-me, como sempre teve, em muito boa conta, estendeu a mim as condolências dispensadas ao frescuroso defunto. E acrescentou:

Quero ressaltar, Excelência — dirigiu-se aos juízes Fulano de Tal — , a nobreza de espírito do Dr.José Geraldo, que nunca nos fez presumir perda tão lastimável, porque sempre que aqui esteve, com a sua conhecida competência, com os seus eruditos acórdãos, trouxe de costume um amplo sorriso no rosto, tudo a nos alegrar, tudo a nos afagar o espírito, tudo a nos induzir a crer que, no íntimo, não sofresse de tanto padecimento. Fique então registrado, Dr. José Geraldo ― e esticou o pescoço pra me alcançar com os olhos ―, o meu mais profundo pesar!

Naquela hora, nada pude fazer senão pôr na cara um jeitão de viúva fresca, embora o meu saudoso pai tivesse emburacado há mais de uma década. De repente, como a sessão formalmente sequer começara, outro juiz, que também já se foi, para a alegria dos advogados que abasteciam a sua conta bancária, veio até mim oferecer um dos mimos da sua educação inglesa. Tomou-me as duas mãos dentro das suas, em forma de concha, recostou-se aos meus ombros e confidenciou, suspiroso e falso, como sempre:

Meus sentimentos!

Respirou fundo, demorou-se uns bons instantes abraçado a mim para dar mais glamour àquele instante tão dorido, e foi sentar-se no seu canto, pensativo, o olhar pregado no chão, filosofando sobre a pequenice da aventura humana na Terra, ou contando dinheiro, o que é mais provável. Os outros, copiosos dessa elegante etiqueta cadaverosa, e convictos de que era assim que se procedia em França ou nos condados ingleses, fizeram o mesmo, com exceção dos juízes Fulano de Tal, que estavam se lixando pela minha dor. Um por um se foram chegando, me apertando contra o peito e expressando as suas mais sentidas e falsas condolências, com exceção de uns dois ou três amigos que sentiam de fato a minha dor. Minha vontade era de morrer de rir, mas a importância do velório tardinheiro exigia prudência. Fiz-me firme e ereto, e suportei, na forma regimental, todo aquele sofrimento hipócrita.
Se não me engano, umas duas ou três gotinhas de lágrimas escorreram pelo canto dos olhos, se foram derrubando, debulhando, desfazendo, passaram fugidias pelos lábios e se espatifaram no chão do Plenário, que, dali por diante, pelo menos para mim e para meu finoso pai, nunca mais foi o mesmo. Aquele cenário nobre é a prova material do meu delito. Naquele dia, eu prometi a mim mesmo que nunca mais mataria meu pai, especialmente a facadas, que isso deve doer pra cacete...
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ilustração