sexta-feira, 16 de abril de 2010



A "fenda"...

Em resposta à consulta feita pelo senador Francisco Dornelles, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu em Sessão Plenária realizada ontem, 15/4, que o candidato a algum cargo público que canta profissionalmente pode continuar cantando durante o período eleitoral. O senador formulou a consulta porque a lei eleitoral proíbe os tais “showmícios”. Na minha modesta opinião, em alguns casos particulares o sujeito tinha de ser proibido de cantar, dentro ou fora do período eleitoral. Até mesmo no banheiro. O relator, ministro Arnaldo Versiani, disse que "o que ele não pode fazer é participar de showmício e cantar, mas ele poderia cantar, fora do showmício, exercendo a sua profissão". O ministro tá certo. Cada um se vira como pode. Minha relação com o canto sempre se deu entre tapas & beijos, como diz a letra de uma conhecida música sertaneja. Quando eu era funcionário de uma Junta de Conciliação e Julgamento em São Paulo (sou do tempo em que as Varas do Trabalho se chamavam Juntas), fui assistente de uma juíza que gostava de canto lírico. Eu detesto canto lírico. Lá um dia, a pobrezinha apareceu muito jururu no trabalho dizendo que o médico a proibira de cantarolar porque tinha desenvolvido um calo nas cordas vocais, e se quisesse maravilhar os seus dois ou três ouvintes compulsórios tinha de poupar a voz. Como tinha mania de cantarolar e batucar com os dedos enquanto me ditava as sentenças, me incumbiu de avisá-la sempre que a flagrasse cantarolando as óperas e árias. E lá ficava eu, o dia inteiro, de manhã à tarde, feito um mané, atento à maviosa cambaxirra entoando baixinho "Ode à Alegria", "Cavalleria Rusticana", "La donna è mobile", "Aída", "Pagliacci", pra dizer o mínimo. Acho que o Bocelli naquela época nem era nascido. Era descuidar e a pobre dava de cantarolar, e o basbaque que vos fala interrompia: “Está cantarolando, Excelência!”. “Ah!, obrigada, filhinho!” – dizia. Não passava um minuto e lá vinha a Maria Callas com a sua cantarolação, e lá ia eu interromper, e tome de “Obrigada, filhinho!”, até que um dia me aborreci e resolvi fazer concurso pra juiz do trabalho. Eu faria qualquer coisa pra fugir daquele suplício. Anos depois, já no Rio, meus filhos me encheram tanto o saco que comprei um desejado videokê e uns cinco ou seis cartuchos de músicas de tudo quanto é tipo, das antigas ao axé, do funk ao padre Marcelo Rossi. Acreditem! Até Padre Marcelo Rossi. "Erguei as mãos e dai glória a Deus!". Tinha o "Pintinho Amarelinho", do Gugu, "Ilá-ilá-riê", da Xuxa, "Pare de tomar a pílula", do Odair José, "Eu não sou cachorro, não!", do Waldick Soriano, Tonico & Tinoco, Tião Carreiro & Pardinho, Claudinho & Buchecha, Wanderléa, Wando, Os Menudos, Os Mutantes, Raul Seixas, Macarena, Besame mucho. Tudo! Tínhamos pra mais de quinhentas. Uma amiga minha, moça muito bonita e prendada nas coisas do magistério, adorava cantar. Aparecia lá em casa aos domingos pra filar um rango e cantar. Desconfio até que estivesse de olho em mim, mas ela nunca deixou isso muito claro. Fiquei na minha. De vez em quando a irmã aparecia. Cantava muito. Afinadíssima! Acho que eu nunca disse isto a ela, mas eu gostava de ouvi-la cantar uma música do Carlinhos Brown, que a Cássia Eller gravou. O nome não me lembro. A letra começava assim: "Tava com cara que carimba postais, ouvi no rádio uma carta de amor". Ou algo assim. Soube que casou e tem uma filha. Se a filha cantar como a mãe, vai longe. Mas volto à minha amiga. A pobrezinha, assim como a juíza de que lhes falei no início, também tinha calo nas cordas vocais, e de tanto falar provocou o que uma fonoaudióloga disse que era uma “fenda”. Notem bem a diferença: calo é uma protuberância pra fora; fenda, uma protuberância pra dentro. Protuberância pra fora acho que é redundância. Protuberância pra dentro,burrice mesmo.Como isso interfere na afinação, não sei bem. Acho que o ar aspirado entra por ali e se estabaca no calo. O sujeito desafina. Ou entra por ali e cai no buraco, digo, na "fenda". A voz falseia e o sujeito falseteia. Sei lá. Acho que é isso. Pois bem. A coitadinha não conseguia alcançar as notas mais altas. Pra ser sincero, nem as mais baixas. Pra ser ainda mais sincero, acho que também não alcançava nem as médias. Ok.Vou escancarar: Não alcançava nota nenhuma! Ela misturava um falsete-em-si-bemol-maior com um cacoete-em-fá-sustenido-menor e a voz ficava entre uma grande desafinação e um escancarado semitom. Mas ela insistia, assim como a juíza, para desespero do seu público compulsório que, no caso, se resumia a mim, porque, quando ela começava a entoar "Iolanda", do Pablo Milanez, ou "Espanhola", do Sá & Guarabira, a criançada inventava de jogar videogame, fazer xixi, e voava da sala, me deixando na maior saia-justa. Quando a gente advertia “Sobe o tom! Sobe o tom!”, ela se virava muito discretamente e, sem interromper a bela cantoria pra não errar na letra, apontava a garganta com o dedo e dizia “É a fenda! É a fenda!”. Da juíza cantante eu nunca mais soube. Acho que a esta altura até já se aposentou. O videokê está lá em casa até hoje. Nunca mais cantamos. Acho que a vida levou a nossa alegria por engano e esqueceu de devolver. Será que a minha amiga já se curou da “fenda”?
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1.O autor é Juiz do Trabalho no Rio de Janeiro(7ª Turma). Canta no banheiro.Baixinho...
2.Ilustração:http://images.google.com.br/imgres?imgurl=http://1.bp.blogspot.com/_0WRaC_06kCU/Sf0ayKOJKFI/AAAAAAAAAm0/4BaeoT9VxZk/s400/Crian%C3%A7a%2Bcom%2Bdor%2Bde%2Bouvido.jpg.





Cumprimento de sentença.
zé.


Desde o advento da Lei nº 11.232/2005, os processualistas civis celebram com desnecessário estardalhaço um dispositivo tão simples quanto óbvio, que está na CLT há 60 anos, e sempre deu muito certo. Falo do que eles chamam de “processo sincrético”, ou “sincretismo processual”. No regime anterior à L.nº 11.232/2005, a parte vencedora da lide dispunha de um prazo de até dois anos para propor a liquidação e a execução do julgado. Se deixasse esse prazo escoar, sem agir, atraía a “prescrição intercorrente” (entre + correr), isto é, a perda do direito de ação que ocorria entre dois momentos estanques do processo, a cognição e a execução. Na linguagem popular, "ganhava mas não levava". Para os processualistas do trabalho, a fase de execução de sentença nunca foi separada da cognição, tanto que, segundo a CLT, transitada em julgado a decisão condenatória, o juiz do trabalho deve iniciar a liquidação de ofício. Não há prescrição intercorrente no processo do trabalho. Como dito, isso, que na CLT é sexagenário, e nunca teve nome algum, os processualistas chamam de “processo sincrético”. A L.nº 11.232/2005 eliminou esse lapso entre a cognição e a execução e inaugurou o que se convencionou chamar “cumprimento de sentença”. Pelo novo regime, trazido pela L.nº 11.232/200, o vencido deve, em quinze dias contados do trânsito em julgado da decisão condenatória, apresentar-se espontaneamente para pagar o débito reconhecido em sentença, sob pena de suportar a execução, a pedido do credor, mas com acréscimo de dez por cento(10%) sobre o valor corrigido da condenação. A CLT é omissa sobre o ponto, e discute-se agora, especialmente entre as Turmas do TST, se o art.475-J do CPC, que prevê a multa de 10%, se aplica ou não ao processo do trabalho. Tenho posição firmada sobre o ponto, e já publiquei uns dois ou três artigos sobre o tema, neste blog, em revistas especializadas brasileiras e na Itália. Para mim, o art.475-J do CPC é absolutamente compatível com o rito da CLT. Existem outras questões tratadas na L. nº 11.232/2005, sobre as quais ainda não se assentou consenso. Outra hora falo delas. O que me faz voltar a esse tema é o julgamento da E. 3ª Turma da Corte Especial do STJ no REsp. nº 940.274/MS, onde, com o objetivo de dar interpretação definitiva sobre o art. 475-J do CPC, fixou-se o entendimento de que a intimação para o devedor pagar o débito, sob pena de arcar com a multa de 10%, deve ser feita na pessoa do advogado do vencido, após o trânsito em julgado da decisão condenatória. Coisa, aliás, que eu já havia dito há muito, e os meus escritos estão por aí, como prova da anterioridade.Em rigor, não há nem necessidade de uma intimação expressa para isso. O advogado regularmente constituído nos autos já é necessariamente intimado da decisão, e ainda que a decisão nada fale sobre a incidência do art.475-J do CPC caso o vencido não cumpra sponte sua a sentença, a norma está posta, está no sistema e vale erga omnes.
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