quinta-feira, 28 de janeiro de 2010



A Via-crúcis.
             zé geraldo



Meu filho tinha de cinco pra seis anos e chegou do colégio eufórico.Tinha tido a primeira aula de Religião. Acoitou-se, novidadeiro, e tascou:
― Pai, cê sabe como mataram o Jesus?
Antevendo a merda, que o garoto sempre foi meio maluco, respondi, interessadíssimo:
― Não sei, filho lindo, não sei mesmo! Conta aí.
Aí ele contou:
― “Os maus” não gostavam do cara.
Aparteei:
― É mesmo, filho, por quê?
Foi seco:
― Não sei. A tia vai explicar na próxima aula.
― Ah, entendi ― conformei-me com a aula dada pela metade.
― E daí?
― Daí, pai, os maus pegaram o Jesus distraído, foram dando porrada, dando porrada, assim, numa subidinha, e botaram nele um espinho.
― Ai, meu Deus! ― teatralizei ―, quanta judiação prum homem só!
Ele prosseguiu:
― Aí, pai, levaram o Jesus pra um morrinho e pregaram ele num pau.
Irresignei-me, respeitoso:
―Deus do céu! Não! Assim já é demais! Alguém tem de fazer alguma coisa, onde já se viu?
Ele continuou:
― Pai, aí veio um soldado e espetou um negócio bem assim, na costela dele ― enfiou o dedo na minha barriga, fazendo uma cara de dor.
― Coitadinho! ― eu disse ― Já não bastasse a dor, e ainda mais isso? Quando é que esse sofrimento vai acabar, Santo Pai?
Acho que até olhei pro céu nessa ora. Não me lembro. Bem, aí ele se superou:
― Pai, mas teve uma hora que o Jesus se emputeceu, desceu do pau e tá-tá-tá-tá-tá-tá! ― botou as duas mãos assim, na cintura, imitando uma metralhadora antiaérea ― Mandou bala em todos os maus! ― encerrou, satisfeito, aquela jornada de humilhações do Nazareno em toda a antiga Galileia.
Não me contive:
― Ê-ê-ê-ê-ê-ê-ê!!!!!!. Jesus, tá-tá-tá. Jesus, tá-tá-tá!!!!
Saí pulando feito um maluco pela sala.
Ficou contentíssimo! Via-se pelo brilho dos olhinhos.
― Muito bom, cara, muito bom mesmo!
Elogiei, dei-lhe um puta abraço, morrendo de vontade de rir. Mas não podia. Afinal, o cara tava falando da via-crúcis do Nazareno! Lembrei logo do meu pai: respeito é bom e conserva os dentes da frente!
― Tá com fome? ― perguntei.
― Um pouco ― respondeu assim, simples e objetivamente. Seco, pra ser mais exato.
― Aceita um McDonald´s? Tenho grana aí.
― Tem brinde?
― Sei lá, a gente pergunta.
― Então, pode ser ― sentenciou― . Mas se for brinde de menina, não quero!
No dia seguinte, fui levá-lo ao colégio e a irmã, sempre doce, recebia a galerinha no portão principal.
― Irmã ― eu disse―, a Senhora conhece a via-crúcis segundo meu filho?
E a pobrezinha, toda feliz com os progressos ecumênicos da sua aula de religião, me disse, sorrindo:
― Não, pai, não conheço. Será que o nosso amiguinho poderia nos contar, por favor?
Dei força:
― Conta aí, cara. Desembucha!
Desembuchou. Acrescentou até uns detalhes que não constavam da versão da véspera: uns três ou quatro tombos que o Jesus tomou na subida, uma ralação no joelho e nem botaram mercúrio porque ― segundo ponderou, “arde”―, umas chicotadas que um soldado deu no Jesus porque achou que ele tava enrolando e subindo muito devagar, essas coisas. A bochecha da freira de branquinha foi ficando rosa, rosa-bebê, rosa-chá, rosa-rosa, rosa-choque, rosa-embolia, rosa-infarto do miocárdio, vermelho semimorto, vermelhão, vermelho-china, vermelho-fogo, vermelho-puro, vermelho-mar-vermelho, vermelho-azulado, foi subindo, subindo, subindo, vermelho-cadáver e, no final, tava fúcsia. Eu nem sei que raio de cor é essa tal de fúcsia, mas tenho certeza que a bochecha da irmã tava fúcsia. Totalmente fúcsia, do canto do lábio até a orelha, subindo pelo nariz até o lenço, arrumadinho na cabeça e preso com dois grampinhos pretos delicados, em forma de anjo.
Ela virou-se pra mim, toda desculposa:
― Olhe, pai, eu não disse isso em classe, definitivamente!
― Claro que não, irmã ― tranquilizei-a, apiedado e compreensivo ―, o cara só misturou sua aula de religião com a sessão da tarde, Rambo III, Duro de Matar 17, Arnold Schwarzenegger, essas coisas. O importante, irmã ― a situação exigia prudência no falar, pra não forçar a coitada a desistir da carreira ―, é que o Bem venceu o Mal. Isso é o que importa! Senão, o mundo tava muito pior do que está. A senhora sabe disso muito melhor que eu― emprestei-lhe autoridade sacra ex cathedra.
― Tchau, filho! Estuda direito, hein? Papai ama você. Depois me conta porque os maus não gostavam do Jesus!
O cara saiu todo pimpão, feliz da vida, cheio de moral, a irmã com a mão no ombro dele, falando baixinho, a outra mão com o dedo indicador em riste, gesticulando de um jeito nervoso. Acho que conversavam sobre futebol. Ou merenda. Não deu pra ouvir direito e eu também tava atrasado pro serviço.
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O autor (foto by Rafa)é juiz do trabalho,poeta,fotógrafo e escritor.O que está no texto se deu exatamente assim.O personagem principal hoje tem 16 anos e nega os fatos.É "mico", segundo diz.













(foto by zé-Rio Cricket)