sábado, 23 de janeiro de 2010



Sobre a Sucessão Trabalhista nos Cartórios.
                                                                                                    zé geraldo(1)

Introdução


Conquanto não seja rotineiro, de aqui e ali os juízes trabalhistas são chamados a decidir lides entre serventuários de cartórios e suas respectivas serventias. Isso quase sempre se dá com a assunção do novo titular, que dispensa o pessoal antigo, no todo ou em parte, ou por resilição do cartorário, motivada por falta grave na constância do ofício. De costume, o pedido é deduzido em face da serventia, e alega-se sucessão de empregadores. O fundamento legal é sempre o mesmo: os arts.10 e 448 da CLT. Pergunto: há sucessão na atividade registral ou a responsabilidade é pessoal dos notários? É o que pretendo desvendar.


Natureza jurídica da atividade registral


1.No dia a dia do foro, muita vez me sinto como o próprio Nazareno: tenho pregado inutilmente no deserto. Dizer que me sinto como aquele pobre judeu é pretensão minha. Ele, ao menos, se quisesse, poderia ordenar que as areias do deserto e os camelos calmassem os ânimos para ouvi-lo. Eu — pobre de mim!—, quando muito, consigo que os colegas finjam que me ouvem para, depois, a pretexto de elogiarem a beleza da tese, dizerem que a acham um “absurdo”. Não sei se eles sabem, mas “absurdo”, do latim absurdu, significa “aquilo que é contrário ao bom-senso”, aquilo “que foge à razão”. Na sua origem, a expressão absurdu era usada para significar aquilo que era dissonante, que feria os ouvidos, que emitia som desagradável. Não sei bem por que, em certo tempo a expressão absurdu passou a ser usada para definir a tagarelice dos doidos, porque o linguajar desconexo dos loucos feria os ouvidos apurados daqueles que se julgavam “normais”. Dizer que uma tese é um “absurdo” é o mesmo que dizer que o seu autor ficou maluco. É assim que me tratam no foro. Por isso, peço ao meu leitor ocasional que, depois de me ler com dobrado cuidado, tenha ao menos a decência de rir em silêncio, se é que isso é possível. Digo sempre - sem que me oponham argumentos convincentes - que os serviços notariais e registrais são públicos, exercidos por delegação. Para efeitos didáticos, equiparo essa delegação à exploração de um bem público. Bens públicos são todas as coisas corpóreas e incorpóreas, imóveis, móveis e semoventes, créditos, direitos e ações que pertençam, a qualquer título, às entidades estatais, autárquicas e paraestatais. O titular desses serviços é sempre e sempre o Estado, que os delega, provisoriamente, ao particular. A concessão de um serviço público ou a aquisição de direitos de exploração de serviços públicos, por delegação do ente público concedente, é coisa fora do comércio, e não pode, assim, ser transmitida a terceiros. Traditam-se, apenas, as coisas do comércio. Se a delegação do serviço público é coisa que não se transmite porque não está no comércio, e se empregador é empresa, e empresa é atividade do empresário, não há sucessão entre notários, meros delegatários de função pública, porque o delegatário não teve transferida para si a empresa - entendam-me: a atividade - do ente concedente, mas o empréstimo, por concessão, e durante certo tempo, dessa atividade, para que a explore por sua conta e risco, mas sempre em nome do Estado delegante.

2.Segundo o art.69 do Código Civil de 1916, são coisas fora do comércio as insusceptíveis de apropriação e as legalmente inalienáveis. Todos os bens públicos são de domínio nacional e, portanto, insuscetíveis de apropriação. A atividade registral é pública por excelência e, como tal, até pode ser exercida por delegação, mas jamais será susceptível de apropriação ou alienação e, por óbvio, de sucessão. A delegação do serviço registral de propriedade do Estado, e antes entregue ao notário que precedeu o titular atual, cessa, ipso jure, para antigo notário, com a investidura do atual. O novo titular da escrivania não herda com a investidura o passivo financeiro deixado pelo delegatário a quem substitui, especialmente em relação a dívidas trabalhistas. Se a analogia é válida, a exploração do serviço notarial e registral pelo delegatário do Poder Público assemelha-se ao uso de um bem público, em sentido estrito. Usam-se os bens públicos de forma comum ou especial. O uso de um bem público é comum quando serve à coletividade em geral, sem qualquer discriminação de usuários ou ordem especial para a sua fruição. Não se admite remuneração nem qualquer forma de limitação de frequência, exceto as restrições gerais, de ordem pública, que visem à proteção de segurança, higiene, saúde, moral e de bons costumes . No uso do bem público, de forma especial, a Administração desafeta o bem público do seu uso comum para destiná-lo ao uso individual .A forma de fruição de um bem público, de uso especial, pelo particular, varia de acordo com a natureza do bem público e a sua destinação, e pode ser de modo precário ou definitivo, oneroso ou gratuito. Pode dar-se mediante autorização de uso e permissão de uso, concessão de uso e concessão de uso como direito real resolúvel.

3.Autorização de uso é ato unilateral, precário, discricionário, revogável a qualquer tempo, e sem ônus, por meio do qual a Administração consente na prática de certa atividade individual sobre um bem público. Não depende de forma especial e visa uma atividade transitória e irrelevante para o Poder Público. Permissão de uso é um ato negocial unilateral, discricionário e precário, revogável a qualquer tempo, oneroso ou gratuito, de tempo determinado ou não, através do qual a Administração faculta ao particular a utilização individual de um bem público. Cessão de uso é a transferência gratuita de um bem público de uma para outra entidade pública. Por fim, concessão de uso é um contrato administrativo por meio do qual o Poder Público atribui ao particular a utilização exclusiva de um bem público, para exploração segundo uma destinação específica. Distingue-se da autorização de uso e da permissão de uso pelo caráter contratual e estável da outorga do uso do bem público ao particular, para utilização, com exclusividade, nas condições convencionadas com a Administração. Tanto quanto qualquer outra forma de cessão de bem público, pode ser remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, exigindo, sempre, autorização legal e, em regra, concorrência. Segundo a doutrina,

“...Sua outorga não é nem discricionária, nem precária, pois obedece a normas regulamentares e tem a estabilidade relativa dos contratos administrativos, gerando direitos individuais e subjetivos para o concessionário, nos termos do ajuste. Tal contrato confere ao titular da concessão de uso um direito pessoal de uso especial sobre o bem público, privativo e intransferível sem prévio consentimento da Administração, pois é realizado intuitu personae, embora admita fins lucrativos“.

4.Prossigo:

"Concessão é a delegação contratual ou legal da execução do serviço, na forma autorizada e regulamentada pelo Executivo. O contrato de concessão é ajuste de direito administrativo, bilateral, oneroso, comutativo e realizado intuitu personae. Com isto se afirma que é um acordo administrativo(e não um ato unilateral da Administração),com vantagens e encargos recíprocos, no qual se fixam as condições de prestação do serviço, levando-se em consideração o interesse coletivo na sua obtenção e as condições pessoais de quem se propõe a executá-lo por delegação do poder concedente. Sendo um contrato administrativo, como é, fica sujeito a todas as imposições da Administração, necessárias à formalização do ajuste, dentre as quais a autorização, a regulamentação e a concorrência. A lei apenas autoriza a concessão e delimita a amplitude do contrato a ser firmado; o regulamento estabelece as condições de execução do serviço; o contrato consubstancia a transferência da execução do serviço, por delegação, ao concessionário, vencedor da concorrência. O contrato há que observar os termos da lei, do regulamento e do edital da licitação sob pena de expor-se à nulidade”.

5.Vou adiante:

“Pela concessão, o poder concedente não transfere propriedade alguma ao concessionário, nem se despoja de qualquer direito ou prerrogativa pública. Delega, apenas, a execução do serviço, nos limites e condições legais ou contratuais, sempre sujeita à regulamentação e fiscalização do concedente. Como o serviço, apesar de concedido, continua sendo público, o poder concedente - União, Estado-membro, Município- nunca se despoja do direito de explorá-lo direta ou indiretamente, por seus órgão, autarquias e entidades paraestatais, desde que o interesse coletivo assim o exija. Nessas condições, permanece com o poder concedente a faculdade de, a qualquer tempo, no curso da concessão, retomar o serviço concedido, mediante indenização, ao concessionário. As indenizações, em tal hipótes, serão as previstas no contrato, ou, se omitidas, as que forem apuradas judicialmente“.

6.Não há qualquer discrepância na doutrina sobre o fato até certo ponto óbvio de que com a extinção da concessão se dá a reversão do serviço concedido ao poder concedente. Ouça-se HELY LOPES MEIRELLES:

“Reversão, como a própria palavra indica, é o retorno do serviço ao concedente, ao término do prazo contratual da concessão. Segundo a doutrina dominante, acolhida pelos nossos tribunais, a reversão só abrange os bens, de qualquer natureza, vinculados à prestação do serviço. Os demais, não utilizados no objeto da concessão, constituem patrimônio privado do concessionário, que deles pode dispor livremente, e, ao final do contrato, não está obrigado a entregá-los, sem pagamento, ao concedente. Assim é porque a reversão só atinge o serviço concedido e os bens que asseguram a sua adequada prestação. Se o concessionário, durante a vigência do contrato, formou um acervo à parte, embora provindo da empresa, mas desvinculado do serviço e sem emprego na sua execução, tais bens não lhe são acessórios, e, por isso, não o seguem necessariamente na reversão. As cláusulas de reversão é que devem prever e tornar certo quais os bens que, ao término do contrato, serão transferidos ao concedente e em que condições. A reversão gratuita é a regra, por se presumir que, durante a exploração do serviço concedido, o concessionário retira, não só a renda do capital, como também o próprio capital investido no empreendimento. Se nada for estipulado a respeito, entende-se que o concedente terá o direito de receber de volta o serviço com todo o acervo aplicado na sua prestação, sem qualquer pagamento“.


Sucessão de empregadores

7.Sucessão de empregadores é o inferno astral de qualquer juiz do trabalho. Há duas premissas que se deve examinar, até mesmo de ofício, antes de decidir se em dado caso há ou não sucessão de empregadores :

a) - se a empresa, entendido o termo como atividade empresarial , foi efetivamente transferida a terceiros, por qualquer meio(cessão, fusão, alienação etc),no todo ou em parte;

b) - se os contratos de trabalho sofreram solução de continuidade, isto é, se os contratos de trabalho começaram com o sucedido e não continuaram com o sucessor.

8.Ou seja: para que ocorra,verdadeiramente,sucessão de empregadores, é preciso que tenha havido a transferência da empresa (entendamos: da atividade do empresário), no todo ou em parte, e que os contratos de trabalho tenham começado com o sucedido e continuado com o sucessor. Se a empresa (a atividade do empresário) não foi transferida, ou o foi quando legalmente não podia, não há sucessão. Por outra, se a empresa foi efetivamente transferida, mas aquele que se diz credor trabalhista nunca foi empregado do sucessor, a hipótese não é de sucessão de empregadores, e a responsabilidade pelos débitos decorrentes da extinção do contrato de trabalho continua sendo do antigo empregador, e não do novo, porque o novo empresário não foi nem é, tecnicamente, empregador desse sedizente empregado.

9.Admitindo-se, por hipótese, servissem aos propósitos deste tipo de sucessão(entre notários)os arts.10 e 448 da CLT, como os advogados costumam alegar, não se teria sucessão de empregadores na atividade registral porque para haver sucessão é preciso que a empresa (no sentido de atividade negocial) passe das mãos de um para as de outro empresário, e nessa atividade não tenha havido solução de continuidade do contrato de trabalho, isto é, o empregado tem de provar ter trabalhado para o sucedido e para o sucessor. Segundo estudos muito lidos,

“a fundamentação doutrinária da figura da sucessão de empresa resulta da observância de três princípios do Direito do Trabalho: 1º) - o princípio da continuidade do contrato de trabalho; 2º) - o princípio da intangibilidade objetiva do contrato de trabalho; 3º) - o princípio da despersonalização do empregador”.

10.Como dito, a atividade notarial, sendo delegação do Poder Público, não se transmite a terceiros por ato entre particulares, mas reverte ao concedente para que nela invista outro titular. Assim, a “empresa” notarial (entendam: a atividade registral) jamais se transfere de um notário para outro, mas torna ao Estado, que a redelega. Já por aí se vê que sucessão trabalhista, tecnicamente, não há nem pode haver, ainda que o autor tenha trabalhado para o antigo e para o novo titular da serventia.

Responsabilidade pessoal do notário


11.Segundo o art.21 da L.nº 8.935/94, a responsabilidade administrativa e financeira dos serviços notariais e de registro é do respectivo titular, inclusive quanto às despesas com pessoal. A investidura do notário por ato delegatório do Tribunal de Justiça restringe a sua responsabilidade aos atos de sua gestão, separando o joio do trigo, de sorte que dívidas e obrigações antigas são de responsabilidade do notário que o precedeu na delegação do serviço registral.
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1.O autor(foto by Rafa) é Juiz do Trabalho, membro efetivo da 7ª Turma do TRT/RJ, Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP, mestrando em Direito Processual Civil pela Universidade Federal Fluminense — UFF — e Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, Membro da Comissão de Jurisprudência do TRT/RJ, Presidente do Conselho Consultivo da Escola de Capacitação de Funcionários do TRT/ RJ — ESACS —, membro do Conselho Pedagógico da Escola Superior de Advocacia Trabalhista de Niterói — ESAT —, professor universitário e de cursos preparatórios para concursos públicos, membro de bancas examinadoras de concurso de ingresso na Magistratura do Trabalho, autor de livros jurídicos, autor de artigos jurídicos publicados no Brasil e na Itália, conferencista, redator de propaganda, fotógrafo e poeta.

2.Os fundamentos doutrinários estão em Hely Lopes Meirelles,Direito Administrativo Brasileiro,Ed.RT,14ª edição,p.426;Código Civil brasileiro de 1916,art.65;Arion Sayão Romita, Direito do Trabalho-Temas em Aberto, Ed.LTr,1996,p.188/189; Valdírio Bulgarelli, Teoria Jurídica da Empresa, Ed.RT.

3. O artigo acima foi publicado originariamente na Itália e está disponível em  http://www.diritto.it/materiali/straniero/dir_brasiliano/index.html, acesso em 13/1/2010.2.

4As ilustrações do texto acham-se em http://tinypic.com/view.php?pic=29q1mkz&s ehttp://biaemariogama.sites.uol.com.br/anjinhos/anjinho3.gife  e  http://acertodecontas.blog.br/wp-content/uploads/2009/06/burocracia.jpg