terça-feira, 9 de fevereiro de 2010



Data venia!



Data venia”, expressão surrada em Direito, quer dizer “com a sua licença”, “com a sua devida permissão”, e somente se usa quando alguém, em posição inferior, quer discordar da opinião de alguém que, por um motivo qualquer, tem ou está em posição superior. Por isso eu comecei este post com a expressão latina para pedir licença para discordar do voto do ministro carioca Aloysio Correia da Veiga, a quem aqui tantas vezes rendi homenagens pela qualidade e consistência dos acórdãos. O caso é interessante, e foi julgado esta semana no TST. Omito o nome do empregado para não aprofundar a sua dor moral. Depois de ter cumprido três anos de cadeia pelo assassinato de sua mulher, grávida de oito meses, o sujeito foi condenado a mais um ano de prisão por ocultação de cadáver. Finda a pena, retornou ao emprego, na Petrobrás, e foi dispensado por justa causa, com base no art.482, “d” da CLT. O relator, ministro Maurício Godinho Delgado, entendeu que o trabalhador condenado criminalmente não pode ser dispensado por justa causa se já houver cumprido a pena de prisão quando da sua dispensa pela sociedade empresária. Respeito a divergência do ministro Aloysio, como sempre, mas me parece que a razão estava mesmo com Godinho Delgado. Segundo o ministro Aloysio, “a questão é uma regra legal que diz o seguinte: é justa causa a sentença criminal condenatória transitada em julgado em que não haja suspensão da pena”, e o fato de se dizer “que o trabalhador já cumpriu a pena não retira o conteúdo da decisão criminal”.

A única razão para que o art.482, “d” da CLT eleja a condenação criminal como justa causa para a dispensa não está no crime em si, mas na parte final da regra, que diz, “caso não tenha havido suspensão da execução da pena”. O motivo é óbvio: se o empregado é condenado no crime, e não há suspensão da pena, terá de encarcerar-se para cumprir a condenação criminal. Recolhendo-se ao presídio por mais de trinta dias, caracterizará abandono de emprego(CLT,art.482, “i”). É só por isso que a regra celetista impõe como causa para a terminação motivada do contrato a condenação criminal sem suspensão da execução da pena. Qualquer que seja o crime, se a execução da pena foi suspensa, o trabalhador pode retomar o emprego normalmente. Por outro lado, se o empregado for condenado à pena de prisão e permanecer na cadeia por até trinta dias, nem por isso a condenação criminal provocará automaticamente a rescisão do contrato, a menos, é claro, que a gravidade do crime possa enquadrá-lo em alguma outra penalidade descrita no art.482 da CLT. O finado Valentin Carrion, tantas vezes citado mas apenas treslido, diz, por exemplo, que "a rescisão se impõe por absoluta impossibilidade de cumprimento das obrigações contratuais"(Comentários à CLT.Saraiva:São Paulo,2006,31ª ed.,p.382). Adiante, completa, apoiando-se em GOMES-GOTTSCHALK, Curso e em SUSSEKIND e MARANHÃO, Instituições):"se não houver privação de liberdade, não há causa; se a privação for igual ou inferior a 30 dias, a finalidade da lei desaconselha a rescisão".

E para que não sobre dúvida, remata:"A mesma conclusão se se tratar do benefício de prisão-albergue, onde se permite ao sentenciado a saída durante o dia para trabalhar, recolhendo-se à prisão à noite; outra não pode ser a solução, à vista da necessidade de integração do sentenciado na sociedade".

Concordo inteiramente com o ministro Aloysio quando diz que o fato de o empregado haver cumprido a pena "não retira o conteúdo da condenação criminal". Não retira mesmo. O que o cumprimento da pena retira da pessoa do condenado é o débito moral para com a sociedade, é o próprio crime, pois o condenado já pagou com a privação da sua liberdade o preço de sua afronta à lei penal e às regras de civilidade. Mas a condenação criminal, como exercício legítimo do poder repressivo do Estado, fica. Isso não significa dizer que a condenação e o cumprimento da pena sejam, só por isso, motivos para a dispensa por justa causa. A meu ver, a sociedade empresária deveria, assim que tivesse notícia do encarceramento do empregado, por mais de trinta dias, e sem suspensão da execução da pena, ter ajuizado ação própria, na Justiça do Trabalho, e obtido, por sentença, a resilição do contrato, por justa causa. O que não podia é fazer o que fez: esperar o empregado cumprir a pena e dispensá-lo por justa causa. Nesse momento, de reingresso tormentoso no meio social, tudo o que não poderia acontecer com esse trabalhador é o que acabou acontecendo: primeiro, o homem delinque e deixa na cadeia metade da sua dignidade; quando é posto em liberdade, o patrão, que até mesmo por um dever fiduciário deveria apoiá-lo, o dispensa por justa causa. Na prisão, morreu um pouco da pessoa humana. Com o ato retaliatório da sociedade empresária matou-se o que sobrou dele. Se é que sobrou. Lembrem-se, senhores: a morte social é mil vezes pior que a morte física!
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1.O autor é Juiz do Trabalho no Rio de Janeiro(7ª Turma).
2.Ilustração:http://images.google.com/imgres?//fre.eti.br/devel/algemado.jpg.

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