domingo, 4 de abril de 2010





Sinhá-moça.
zé geraldo



Passava um pouco das seis da tarde de uma sexta-feira carrancuda, dessas que ameaçam trovoada, vento, pancada de chuva e desabamentos, trânsito caótico, correria, árvore despencando sobre garagens e carros. O céu, antes amarelo, ficou azulzinho e depois cinza, deu de soprar aquele ar quente, abafado, dos que dizem que é hora de arrumar os teréns e ir pra casa cuidar da janta. O vento morno fazia um redemoinho no pé da guia e juntava cisco, guimba de cigarro, folha seca, chiclete, papel picado. Levantava um furacão pequeno e logo se desmanchava, deixando o lixo por ali mesmo, entupindo bueiros, afeando a cidade. As pessoas, que antes iam e vinham soltas, pensando na vida, nos amores, nas coisas, no dia de amanhã, num minuto se pegaram apressadas, aos encontrões, preocupadas em chegar ao metrô sempre apinhado, gente triste, desesperançada. Os problemas de costume: sobrando mês no fim do salário. O metrô do Rio é uma bosta. Sujo, antigo. Dá depressão.

-Queira desculpar! Queira desculpar!
-Não foi nada! Não foi nada!
-Vê por onde anda, palhaço!
-Corel Draw! Corel Draw!
-Aqui na minha mão Windows XT. Bagatela!
-Tropa de Elite V! Ainda nem saiu no cinema!

Coisas do centro do Rio.
Eu namorava sinhá-moça há uma semana, dez dias se tanto. Linda! Sempre foi. Era linda. Agora pertence aos homens que a comiam com os olhos quando passava desfilando, flutuando “sem ver seu vigia, catando a poesia que entornas no chão”, como disse Chico em “As vitrines”. É condomínio de outro. O destino embrulhou nossos caminhos. Era o amor da minha vida. Resolvemos ir ao João Caetano.Não lembro a peça.Ela não tinha carro. Nem eu.

-Táxi!

Chegamos cedo, compramos bilhete, ficamos ali, inaugurando a fila. Aos poucos foi chegando gente, chegando gente, logo tinha um montão deles, parecendo uma cobra grande esparramada até o ateliê do Francesco. Ficamos ali, ela com aquele bundão se esfregando em mim e eu com minha cara de babaca me esfregando nela.Passa um pretinho com uma caixa de engraxar. Examina a fila, me escala.

-“Graxa, aí, freguês? Sapatinho tá sambado! Deixo novinho pro dotô.

-Quero não, botafoguense, quero não!. Tentei me livrar do constrangimento.

-Pô, cara! ─ disse ─ Ajuda teu amigo aqui. Quase noite já e não arrumei nem pro café! Vai deixar um irmão na lama?, insistiu.

Outra hora! Outra hora!Tá ameaçando chuva, seu irmão aqui tá a pé, vai estragar todo o teu trabalho.

Eu não queria era me desgrudar daquele bundão, fiicar uns dez minutos feito um vaso, os pés na caixinha do moleque batucando com a escova. Vendo que não arrumava nada comigo, olhou pra mim, dos pés à cabeça, mediu cada centímetro de sinhá-moça(e só de bunda eram muitos!), fez cara de conclusão e mandou de prima:

- “Se deu bem, hein, tio?”.

E foi-se, o sacana, oferecendo os seus serviços aos patetas da fila. Isso me custou caro durante muito tempo. Quando sinhá me amava, tomava banho, se punha toda cheirosa, saía pelada pelo quarto, mirava aquele corpão no espelho oval de aço escovado e dizia, com cara de quem pergunta se vai comer agora ou quer que embrulhe: se deu bem, hein, tio?
Negrinho filho da puta!
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1.O autor é Juiz do Trabalho no Rio de Janeiro(7ª Turma) e, daquele dia em diante, passou a engraxar os próprios sapatos...
2.Ilustração:http://images.google.com.br/imgres?imgurl=https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLZT_giOYlNQlPBhRCyP1TvuUT_4RhyphenhyphenASOQ7mIAmS3k_W08TaSZAVC_Zpw6gJyPxCKBscOMQ0exSagxDVGyiC9zQaaP9GVInCNPSslQ2QUaSirQn2sK8_Wo8dHJklXa8Ab7ei1eJzAHqk/s400/Transporte+colonial+-+liteira+transportado+por+escravos.+Debret,%2B1835..jpg

Um comentário:

Anônimo disse...

Zé: não sei quem é sinhá-moça, mas, pelo que você diz,deve ser papa-fina. Que fim levou?