sexta-feira, 12 de março de 2010





Sobre o art.475-J do CPC.
zé geraldo

A 1ª Turma do TST entendeu que o art.475-J do CPC se aplica ao processo do trabalho e condenou o Banco Real a pagar multa de 10% sobre o débito corrigido caso não pague espontaneamente a obrigação contida na sentença trânsita em julgado. Prevaleceu o voto divergente do ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho.

Doutrina

Sempre decidi como o ministro Vieira de Mello. Anda em moda dizer-se que o direito processual civil alcançou a sua maioridade e é, agora, entre outras modernices, um “processo sincrético”. Querem com isso dizer que já não há mais um processo híbrido, composto de uma exaustiva fase cognitiva e outra executiva, permeadas por um hiato de dois anos no curso do qual o vencedor tinha, necessariamente, de propor ação para executar a sentença, sob pena de nenhum proveito tirar da condenação que lhe foi favorável. Isso, que anunciam como produto do gênio criativo do legislador processual civil, é posse mansa e pacífica no direito do trabalho há quase setenta anos. De fato, a execução de sentença nunca foi fase autônoma em relação ao conhecimento no processo do trabalho, tanto que ali nunca se aplicou a prescrição intercorrente. Exatamente porque o próprio juiz do trabalho pode provocar de ofício o início da execução, o TST chegou a editar súmula proibindo a aplicação da prescrição intercorrente no processo do trabalho. Na omissão do juiz, contudo, não havia e não há prazo peremptório para que as partes liquidem o julgado. A L.nº 11.232/2005 acrescentou a letra “j” ao art.475 do CPC e, agora, depois de transitada em julgado a sentença condenatória, o vencido deve, em quinze dias, apresentar-se sponte propria para pagar o débito. Se não o fizer, e preferir aguardar o início da execução, por requerimento do credor, responderá pelo débito com acréscimo de 10%(dez por cento). De agora em diante, portanto, ou o devedor se apresenta espontaneamente para o cumprimento da sentença, pagando o que deve, ou aguarda o modo clássico de execução, pela iniciativa do credor, já então com acréscimo de dez por cento sobre o débito original. Alguns juízes do trabalho têm adotado a nova disciplina, mas a iniciativa nem sempre é vista com bons olhos. O TST, por algumas de suas Turmas, já se posicionou contra. A doutrina é incipiente e a jurisprudência ainda não sossegou entendimento sobre o ponto.

“Sincretismo” e Cumprimento de sentença.

Sincretismo”, do latim synkretismus, é um termo dúbio, introduzido na filosofia por Brucker, para significar “conciliação mal feita de doutrinas filosóficas completamente diferentes”. Por ele designa-se, amiúde, toda conciliação mal feita, ou pontos de vista de conciliação indesejável. Também pode significar sobreposição ou fusão de crenças religiosas de origens diversas. No sentido que emprestam às reformas do direito processual civil, “sincretismo” significa a fusão de dois ou mais momentos ou etapas do processo, com a intenção deliberada de enxugar o mecanismo de entrega da jurisdição para torná-la mais ágil, efetiva, simples e econômica. O “sincretismo” do processo civil começou com a antecipação de tutela inscrita no art.273 do CPC (antecipação do provimento do mérito diante de prova inequívoca e verossimilhança da alegação) e com a sentença mandamental executiva (tutela específica da obrigação ou providência judicial que assegure o resultado prático equivalente ao adimplemento da obrigação), constantes do art.461, ambas tratadas na L. nº 8.952, de 13/12/94, prosseguiu, em 2002, com a obrigação de entrega de coisa certa, prevista no art.461-A do CPC, e alcançou o apogeu com a L.nº 11.232, em 2005,quando unificou as fases cognitivas e executória para permitir a execução da sentença nos próprios autos da cognição, sem que se possa falar, a partir daí, na necessidade de uma nova ação para executar a obrigação de pagar contida na sentença. No plano teórico, a possibilidade de executar a sentença na mesma relação originária provocou a revisão do conceito de sentença, que deixa de ser, como estava no §1º do art.162 do CPC, “ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”, para ler-se, agora, “ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269”. Quis-se, com isso, dizer que sentença é ato do juiz que se caracteriza pelo seu conteúdo, e não apenas que tenha aptidão para por fim ao processo, por isso a remissão aos arts. 267 e 269 do CPC, que tratam, respectivamente, da extinção do processo, com ou sem resolução do mérito.A execução da sentença, no processo do trabalho, sempre foi vista como mero desdobramento da fase de conhecimento. Nada mais natural. Só dizer o direito não basta. É preciso torná-lo efetivo, e isso, antes de ser do interesse do credor, ou da conveniência do devedor, é obrigação do juiz. Por isso o art.878 da CLT diz que a execução pode ser promovida por qualquer interessado, ou de ofício, pelo próprio juiz. Embora assim o diga, a CLT não estipula prazo para que se liquide a sentença, e se as partes agirem com relapsia, ou o juiz fizer ouvidos moucos ao que está na lei, é possível que o processo durma por anos a fio numa prateleira empoeirada, a prejuízo de todos; da máquina estatal, que terá de manter sob vigilante custódia esse morto-vivo; do empregado, que não recebe o que a sentença lhe deu, e em especial do próprio devedor, que terá de suportar os juros e a correção monetária dessa inércia inadmissível, para a qual ele também concorreu. Os que se opõem à aplicação do art.475-J do CPC ao processo do trabalho argumentam, como regra, que a legislação processual civil comum, e a extravagante, somente se aplicam ao processo do trabalho na omissão da CLT e, mesmo assim, se forem compatíveis com os princípios que a norteiam, e esses princípios são claramente tuitivos. Para esses opositores, a CLT não é omissa sobre cumprimento de sentença, e isso por si seria suficiente para arredar o art.475-J do CPC. Dizem, ainda, que as disposições desse artigo são incompatíveis com a celeridade desejada no processo do trabalho, e com isso pensam ter enterrado a esperança de que a norma civilista fizesse algum sucesso por aqui. Afirmam, também — e isso é verdade —, que o processo de execução trabalhista é regido pela L. nº 6.830/80, que regula o executivo fiscal, e essa lei não prevê multa por não cumprimento voluntário da sentença. E, por remate, insinuam que a aplicação do art.475-J do CPC criaria situações jurídicas intransponíveis no processo do trabalho.

A “mens legis” do art.475-J do CPC.

Como dito, até a edição da L. nº 11.232/2005, o credor no processo civil tinha de propor uma ação dentro da outra para haver o que era seu. Passada em julgado a decisão condenatória, tinha até dois anos para cobrar o crédito, por meio de uma outra ação, proposta nos próprios autos, sob pena de decair do direito. No processo do trabalho, viu-se, isso nunca foi necessário porque a execução não era e não é considerada fase apartada da cognição, e até mesmo o juiz pode iniciá-la, à revelia das partes. O propósito do art.475-J do CPC é provocar o pagamento voluntário da obrigação contida na sentença, ao mesmo tempo em que procura desestimular a mora do devedor e encurtar o tempo de duração do processo, como corolário de uma garantia constitucional. O art.769 da CLT diz que, nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com suas normas. O processo judiciário na CLT é completamente omisso sobre cumprimento de sentença. O art.882 da CLT diz que o executado que não pagar a quantia reclamada poderá garantir a execução nomeando bens ou depositando a quantia reclamada, atualizada e acrescida das despesas processuais. O art.475-J funciona como desestimulador da mora patronal e garantia do direito constitucional à razoável duração do processo, um dos desdobramentos do devido processo legal. Outro argumento que tenho ouvido a favor dessa aparente incompatibilidade entre o art.475-J do CPC e o art.880 da CLT diz com o prazo do devedor para pagar o débito ou discutir a execução. O art.880 da CLT diz que, requerida a execução, o juiz mandará citar o réu para que pague em 48h, ou garanta a execução, sob pena de penhora. O art.475-J do CPC diz que se o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa, ou já fixada em liquidação, não o fizer em quinze dias do trânsito em julgado, pagará o débito com acréscimo de dez por cento. Ou seja: enquanto o art.880 da CLT fixa prazo de 48h, o art.475-J do CPC fala em quinze dias. Em tese, essa regra, por franquear ao devedor prazo de quinze dias para pagamento, contra as quarenta e oito horas da CLT, seria menos benéfica para o credor trabalhista, e inaplicável ao processo do trabalho, portanto. O que os críticos desprezam, é a evidência de que o art.880 da CLT dá ao executado prazo de 48h para garantia do juízo, pelo depósito ou pela penhora, como forma de discutir a execução. Não se trata de prazo para pagamento da obrigação contida na sentença. O art.475-J do CPC diz que o devedor condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação deve efetuar o pagamento em quinze dias, sob pena de sofrer acréscimo de 10%. Há uma diferença fundamental: o prazo exíguo de 48h de que trata o art.880 da CLT é para a garantia de uma execução que pode se eternizar porque pode ser atacada por embargos do devedor, embargos de terceiro, embargos de declaração, agravo de petição e por agravo de instrumento e, na hipótese de erro de procedimento, por reclamação correicional e, em hipóteses excepcionais, até mesmo por mandado de segurança. O prazo do art.475-J do CPC é para que o devedor se apresente e pague o débito, solva a obrigação contida na sentença e ponha fim ao processo. O benefício direto do credor trabalhista é muito maior quando aguarda o cumprimento voluntário da sentença, em quinze dias, com a possibilidade de acréscimo de dez por cento, na relutância do devedor, que quando opta pela execução na forma do art.880 da CLT, com todos os percalços de todos muito conhecidos. O fato de o art.880 da CLT não prever o acréscimo de dez por cento de que trata o art.475-J do CPC apenas mostra a omissão da CLT sobre o ponto, e não a sua opção por um outro critério coercitivo que baste para afastar a nova regra processual. Argumenta-se, ainda, que a aplicação do art.475-J do CPC violaria o art.882 da CLT, que permite ao devedor discutir a execução oferecendo bens à penhora ou garantindo o juízo depositando a quantia atualizada do débito, além dos juros e demais despesas processuais. Trata-se de uma falsa premissa, pois a indicação de bens, atualmente, é prerrogativa do credor, e não mais do devedor. Os críticos dizem, por fim, que a L. nº 6.830/80, que regula o executivo fiscal e rege o processo de execução trabalhista, não prevê qualquer multa para o caso de o devedor não cumprir voluntariamente a sentença. Têm razão. Mas o fato de não haver tal previsão não significa que o art.475-J não deva ser aplicado, mesmo por que a própria CLT já diz que o direito comum é fonte subsidiária do direito do trabalho naquilo em que ela se omitir e no que for com ela compatível. A lei do executivo fiscal é de 1980; o art.475-J do CPC veio com a L. nº 11.232, de 2005. Obviamente, a L. nº 6.830/80 não poderia ter previsto uma regra que só ingressou no sistema vinte e cinco anos depois. Por outro lado, a evidência de que a L. nº 6.830/80 não prevê multa e, portanto, não poderia se aplicar ao processo do trabalho apenas reforça o argumento de que o art.475-J do CPC se aplica ao processo do trabalho porque a CLT é omissa e não há nenhuma incompatibilidade, já que estimula o cumprimento voluntário da obrigação e concorre, na sua medida, para a desejada celeridade processual. A L. nº 6.830/80 também não contém várias inovações trazidas pela reforma processual, mas são usualmente aplicadas à execução trabalhista sem que contra isso se levante a mesma crítica.

Compatibilização entre o art.475-J do CPC e o art.880 da CLT.

Argumenta-se, de último, que a aplicação do art.475-J do CPC criaria “dificuldades intransponíveis” no processo do trabalho. Não vejo quais. O art.475-J fala em “devedor condenado ao pagamento de quantia certa ou fixada em liquidação”. Se se fala em “devedor condenado”, é intuitivo que há trânsito em julgado. Se a quantia foi fixada na própria sentença, como no caso dos procedimentos sumaríssimos, ou na liquidação, após o trânsito em julgado, não há dúvida de quem seja o devedor, o que deve (an debeatur) e de quanto deve (quantum debeatur). Conquanto o artigo fale em aplicação da multa “a requerimento do credor”, penso que possa ser aplicada de ofício, com base no próprio art.880 da CLT, no ponto em que diz que o juiz mandará expedir mandado pelo modo e com as cominações (por ele) estabelecidas. O momento da sua fixação — se na sentença ou na fase de execução — não é, até onde entendo, uma dificuldade. A cominação de pagamento espontâneo, após o trânsito, sob pena de pagar com multa, deve constar da decisão porque é cláusula penal e compõe, no dizer de Dinamarco, um dos capítulos da sentença, mas pode ser estipulada a qualquer tempo pelo juiz, ainda que apenas na fase de execução. Penso que não seja possível exigir a multa do art.475-J do CPC na execução provisória, porque se exige trânsito em julgado. Será sempre cabível no procedimento sumaríssimo porque a condenação é líquida e o devedor sabe, desde o trânsito em julgado da decisão condenatória, o valor do débito. O termo a quo para a exigência da multa é o trânsito em julgado. Não há necessidade de intimação expressa do executado para que pague sponte sua, sob pena de multa, porque isso já está na lei. A intimação, quando necessária, poderá ser feita na pessoa do advogado, especialmente se detém poderes especiais. Na justiça do trabalho não se pede citação in faciem (pessoal) do devedor.
______________
1.O autor é Juiz do Trabalho no Rio de Janeiro(7ª Turma).

Nenhum comentário: