sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010






Só dizer “eu te amo” não basta!
                                          Sigmund Freud



Você já parou pra pensar que razões levam uma pessoa a querer estar com alguém?[1] Só pode ser por amor. Que outro sentimento forte a obrigaria a dividir a sua vida ao meio, somar à outra e transformá-la novamente em uma? O amor é o nosso maior desafio. Amar alguém é descobrir um outro ser que contém sua própria beleza mas ao mesmo tempo está nos refletindo. A magia do amor nos traz uma profunda aceitação do outro[2]. Amar dá trabalho. Esse é o ponto. Assusta! Quero contar um segredo a você: os problemas não estão no amor! Eles aparecem à medida que você passa a não encarar as dificuldades que surgem. Não enfrenta medos, inseguranças, carências[3]. A questão é que amamos com o coração, mas estamos o tempo todo duvidando, controlando o amor com o nosso ego[4]. As pessoas vivem vivendo um amor de mentira[5].Desde crianças aprendemos a mentir sobre nossos desejos para tentar conquistar o amor de nossos pais. Quando crescemos, mantemos os mesmos padrões de conduta da infância: fingimos estar seguros quando estamos assustados. Fingimos ter desejo quando, na verdade, nos sentimos vazios. Fingimos orgasmo quando há um tédio absoluto. Esse mecanismo é bastante complexo e entendê-lo é o primeiro passo para mudá-lo[6]. Cada pessoa aprende cedo na vida que tem mais probabilidade de ser amada se se comportar de acordo com as maneiras com que são aprovadas pelas pessoas que lhe são importantes do que se o seu comportamento for a expressão espontânea dos próprios sentimentos. Por isso, começa a desenvolver uma carapaça de comportamentos externos através da qual se relaciona com o mundo exterior[7]. Repetimos esse comportamento na idade adulta. Acreditamos ser maduros quando, emocionalmente, ainda somos crianças. Fingimos não precisar de ninguém para evitar a dor de um não, de uma despedida, de uma perda. Aprendemos, enfim, a mentir para nós mesmos. E para o outro. Mas o fato é que as mentiras não costumam durar para sempre. Nosso coração, ou o coração do outro, uma hora vai dar o alerta, e então o que verdadeiramente somos precisará vir à tona[8]. Mentimos para evitar conflitos. Aos poucos, as mentiras vão crescendo e começam a destruir o amor. Uma coisa leva à outra e, quando menos se espera, você está preso a um emaranhado de mentiras[9]. E terá de inventar uma mentira para justificar a outra mentira. O resultado disso é que dentro de pouco tempo não há mais espaço para a verdade no seu relacionamento. Você está vivendo um amor de mentira. Seria bom se o outro não percebesse. Mas o pior é que percebe! Nenhum amor é infinito. Amor é uma sensação, um influxo, uma manifestação fisiológica. Precisa ser saciado. Se for saciado e não renovado, acaba. É por isso que os relacionamentos não duram. O amor precisa ser reciclado[10]. É claro que há casos em que a renovação não é possível, mas o melhor é poder ficar junto para sempre. Quando a seiva do amor deixou de fluir, é melhor partir pra outra[11]. O relacionamento sempre avisa quando o amor está indo embora. Cabe a você ouvir esse aviso. O problema é que, quando percebemos que o fim de uma grande paixão se aproxima, somos tomados por um medo absurdo de ficar sozinhos novamente. Medo, não: pânico! É preciso calma nessa hora. O casal deve olhar com carinho para o que está sentindo, conversar muito, e só depois tomar uma atitude. Pode ser que essa esplêndida história de amor que os uniu esteja apenas enfraquecida, necessitando de cuidados. Mas também pode ser que esteja precisando de um ponto final, para que uma nova história possa começar a ser escrita[12]. Nessa hora, em que o pânico toma conta de você, você se desliga de todo o senso de proteção e de autoestima. A emergência é encontrar logo um substituto para sufocar o medo de ficar sozinho, antes que esse medo cresça e se transforme em depressão. Nesse momento, você é presa fácil de amores oportunistas, de aproveitadores de ocasião. Acredite você, ou não, existem milhares de pessoas que não têm qualquer amor-próprio, não se gostam o suficiente ou se acham bonitos demais para se entregarem verdadeiramente a um amor estranho. Ou são pessoas feridas, com problemas secretos, físicos ou psicológicos, que as diminuem aos olhos dos outros. Essas pessoas, para compensar a sua falência pessoal e preservar esses segredos que as diminuem aos próprios olhos, antes mesmo de as diminuírem aos olhos dos outros, desenvolvem comportamento doentio e altamente predatório. Como não são capazes de se entregar profundamente a ninguém, contam seus “amores” por número, e não por qualidade. Para essas pessoas, quanto mais “amores” ocasionais levarem pra cama, mais a sua autoestima sobe, mais o ego se lustra e menos chance haverá de que descubram seus problemas físicos, ou psicológicos, e que se envergonham de revelar ou morrem de medo de que sejam descobertos por acaso. Uma pessoa que sai de um relacionamento conturbado, com a autoestima no pé, é um prato cheio para esses predadores de plantão, que ficam de tocaia observando as outras pessoas. Se esses predadores frequentam o mesmo ambiente de trabalho daquela que está ferida por um relacionamento que não saiu como queria, o cenário está perfeito. Basta fingir que vê nessa pessoa ferida as qualidades que o antigo parceiro desprezou para que a vítima caia feito um pato na esparrela mortal. Um elogio aparentemente despretensioso, um olhar maroto, um bilhetinho doce, umas flores, um convite para jantar são suficientes para que a vítima se julgue alvo do desejo que o antigo parceiro ignorou. Qualquer que seja o tipo de assédio do predador, a vítima ignora a vulgaridade do contato e lê na sua mensagem outra implícita, do tipo “como é que um homem despreza uma mulher como você?” Pronto! Isso basta. É mais uma na contabilidade do assediador. O que a vítima não sabe é que está sendo usada como um pedaço de picanha, apenas para saciar a fome do momento. Não demora, e outra ocupará o seu lugar no “coração” do predador. Se tiver tido o azar de se apaixonar pelo predador, o desastre será completo. Faz planos e passa a girar a sua vida à volta dele, abandonando carreira, família, filhos. O mundo só existe enquanto a pessoa estiver ao seu alcance. Se não se apaixonou, ou fingiu que se apaixonou, fatalmente a recaída virá, mais cedo ou mais tarde. O “novo” amor era um saco vazio, sem conteúdo que se sustente. Essa pessoa, sentindo-se usada pelo “novo amor”, começará o caminho de volta, isto é, passará a considerar que talvez não tenha sido uma boa ideia abandonar a antiga relação, que era complicada mas segura, e passará a ver no antigo companheiro qualidades que sabia existir, mas que o desgaste da relação escondeu por um bom tempo. Ela, então, projeta a sua volta à antiga relação. Inicialmente, com medo, pisando em ovos. Depois, por meio de um ataque frontal. Nem sempre dá tempo de resgatar a antiga paixão. Isso agora já não depende apenas da pessoa que quer voltar, a que caiu em si depois de jogar pela janela a relação desgastada. Depende, fundamentalmente, do outro, do que ficou no prejuízo. A decisão não é mais sua. Vai depender também da vontade do outro, de que maneira o outro superou o tranco da fissura do amor idílico e do estado geral das feridas que a partida deixou na pele daquele que ficou. Você não pode se impor ao outro, como o outro não podia impor a vontade dele para que você reconsiderasse a decisão de ir embora. Se o outro ainda está disponível, a volta tem grande chance de acontecer. Há uma possibilidade. Remota, mas há. Mas, se não está, ou se os cortes foram tão profundos que a pessoa já não se sente amada o suficiente para topar um recomeço, a pessoa se frustra, e é muito provável que volte correndo para aquele “amor” provisório, prometendo mundos e fundos, mentindo, iludindo e iludindo a si própria para tentar ver no amor novo a ilusão de um mundo paradisíaco que sabe jamais existir. Mas não sem antes tentar destruir o amor antigo: se não quer ser meu, não será de mais ninguém! Tudo pelo medo de ficar sozinha! Se você caiu em si, e viu que se precipitou em romper aquela relação que parecia ter chegado ao fim, admita isso, primeiro para você mesma. O primeiro terreno a ser arado é o seu. É o jardim da sua afetividade que precisa ser cultivado agora, e não o do outro. Deixe o jardim do outro por conta do outro. Cuide do seu! Não despeje no outro a responsabilidade pelo que você fez. Ele teve um bom percentual de culpa no desastre da vida a dois, é claro, mas a decisão de sair foi sua. O que é preciso, nessa hora, é honestidade. Você precisa mostrar ao outro que errou, avaliou mal a gravidade da situação e o mérito da nova relação, e que, feitas as contas, a relação antiga ainda era e é melhor e mais gratificante, e que, se cada um ceder um pouquinho, é possível retomá-la de onde parou. Retomar não é propriamente o termo. É preciso começar do zero. Esquecer o passado — que muitas vezes atormenta — e construir algo novo, já sabendo de antemão que o amor é frágil, que acaba, e que ambos terão de cuidar de si, um do outro, e da relação que permeia tudo isso. Se cada um tem a responsabilidade de curar as próprias feridas, as feridas da relação são um fardo para os dois. Se não for assim, essa retomada vai durar menos do que se supõe, e será ainda mais difícil que a antiga[13]. A nova partida será ainda muito mais doída. Se fomos frustrados ou profundamente feridos em nossa infância, nosso avanço em direção a um relacionamento amoroso maduro será inseguro, nosso empenho hesitante e nossa abertura para a vida, contraída[14].Quando crianças, aprendemos a camuflar nosso sentimentos,a fingir que estamos felizes quando na verdade estamos ressentidos, a mentir sobre nossos reais desejos para não irritar nossos pais.Acalentamos por muito tempo a ilusão de que no futuro as coisas iriam melhorar.Mas o futuro já chegou, nós já somos adultos agora e as coisas não melhoraram.Quando crescemos e estruturamos nossos relacionamentos, acabamos mantendo os mesmos padrões de conduta da infância: fingimos estar alegres quando estamos tristes, fingimos nos sentir seguros quando estamos assustados, fingimos orgasmos mesmo sem sentir nenhum desejo. Para evitar conflitos, as pessoas começam a lançar “mentiras inofensivas”[15] (eu nunca amei de verdade, eu te amo todos os dias da minha vida, minha vida sem você não tem graça, não consigo viver sem você, antes de você, nunca amei ninguém de verdade etc)[16]. As mentiras levam ao fingimento, pois, já que está decretado que eu amo minha parceira todos os dias, tenho de fazer cara de apaixonado mesmo estando muito bravo com ela. No final das contas, o relacionamento passa a se resumir a uma coisa: quanto tempo nós aguentamos fingir que estamos felizes? Para ser você mesmo, não é preciso desrespeitar a verdade do outro. Para ser você mesmo, você simplesmente precisa dar atenção à sua verdade. Precisa olhar para dentro de si com o mesmo carinho com que olha para o outro. Precisa querer amar pra valer! O amor cria um estado de abertura e fragilidade, uma vontade de troca com as pessoas. Quando estamos amando, começamos a perceber todas as nossas mesquinharias, todas as nossas misérias. Você começa a não se identificar mais com a personalidade que criou durante a vida inteira. Você abandona aquela escritura de pessoa que determinava que você devia viver uma caricatura, um anexo, um apêndice de gente. Em momentos de amor, a gente se mistura com o outro de forma tão intensa e profunda que desaparece como ser individual. O amor é uma energia tão poderosa que às vezes faz a gente se sentir frágil, vulnerável, forte, sonhador, com muitos sentimentos contraditórios. Assusta amar e ser amado. É um estado que não estamos acostumados a experimentar, e quando se instala sentimos medo. Por causa desse temor, começamos a criar mentiras que nos desconectam do amor, como se não conseguíssemos suportar tanta vida. Fazemos isso por medo, como se não pudéssemos nos satisfazer de modo pleno. Agimos assim também por hábito porque desde pequenos restringiram nossa energia. Colocaram a gente numa escola que era um tédio, tivemos de fazer um monte de coisas de que não estávamos afim. Lembra-se daquelas intermináveis aulas de piano enquanto suas amigas estavam alegremente no play jogando vôlei ou andando de bicicleta? Lembra-se do balé, da sapatilha de ponta, enquanto as coleguinhas do colégio aprendiam hip-hop? Lembra-se do judô e da natação quando tudo o que você queria era fazer um “racha” com os meninos da sua idade na areia da praia? Por isso, estamos acostumados a um nível muito baixo de energia, a viver com pouco prazer, com nada de êxtase. Quando amamos, temos a sensação de não aguentar tanta energia. O problema é que nós, já adultos, continuamos sentindo uma necessidade muito grande de permanecer no controle, de percorrer apenas terrenos conhecidos. Então, fazemos de tudo para acabar com a intensidade insuportável do amor. Para fugir dele, evitamos nos relacionar com aquilo que é essencial em nós. Criamos teorias para disfarçar isso, mas lá no fundo sabemos que estamos mentindo. Ora, a verdade sempre faz bem ao amor. Nós mentimos muito, omitimos muito, para evitar o amor. Muitas pessoas agem assim porque desde pequenas conviveram bem de perto com relacionamentos de mentira. Porque seus pais já não se amavam, mas continuaram juntos. Ensinaram a eles que isso é ser amoroso. Veja que incoerência: muita gente aprendeu a chamar de amor atitudes que, na realidade, demonstravam a ausência dele. Por isso existem muitos por aí falando em amor, discursando sobre o amor sem que a gente perceba algo de amoroso neles. Perceba isso e lute para ser diferente. Vá deixando o amor tomar conta de você. Confie nele, mesmo que pareça difícil, pois é a vida inundando seu ser. Sim, você pode se machucar. Sim, talvez doa. Mas corra o risco. Você vai crescer e, se tiver coragem, vai conhecer o êxtase do amor. Com um pouco de sorte, é capaz até de ser feliz... Porque apenas dizer “eu te amo” não basta![17].

Advertência

Sigmund Freud nunca escreveu este texto! Eu o escrevi, a partir de leituras que fiz, todas expressamente citadas nas notas de rodapé. Cometi este “crime de falsidade ideológica” de propósito. Digo no texto que desde crianças aprendemos a mentir para conseguir carinho e atenção, e com isso fingimos a nossa dor e sonegamos nossas emoções. Quando crescemos, continuamos assim, mentindo o tempo todo, como uma maneira estúpida de esticar a infância e obter aquela dose mínima de “amor” de que precisamos para sobreviver por mais um dia à nossa miséria existencial. Usei o nome do cara só pra que você me ajudasse a provar que minha tese estava certa: a gente vive uma vida de mentira, e os mais felizes são sempre os que são desmascarados por último. “Felizes para sempre” são aqueles que nunca são pegos em flagrante! Seja honesto: você não daria ao texto o mesmo valor se soubesse desde o início que quem o escreveu foi um sujeito chamado Zé, daria? O cuidado e o interesse com que você leu o texto, talvez até aprovando com ligeiro aceno de cabeça algumas de suas conclusões, como se fossem do Freud, provam que eu estava certo, tanto nas outras coisas quanto no amor: dizer “eu te amo”, não basta. É preciso enxergar o interior das coisas. Exatamente como você fez com o meu texto, ainda que supondo que fosse do sujeito, provavelmente um cara muito mais interessante e denso. Eu concordo com você. Também suponho que Freud tenha sido mesmo tudo isso que você imagina que fosse. Mas você há de concordar comigo: a gente julga os livros pela capa. Como disse Caetano, “de perto ninguém é normal”[18]. Sejamos francos: a que distância você já chegou de qualquer livro de Freud? Nem me refiro àqueles, em alemão, mas a esses, vendidos aos punhados nas bancas de jornal?
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O autor é juiz do trabalho, membro efetivo da 7ª Turma do TRT/RJ, mestrando em Direito Processual Civil pela Universidade Federal Fluminense/Ematra,Especialista em Processo Civil pela PUC/SP, membro da Comissão de Jurisprudência do TRT/RJ,Presidente do Conselho Consultivo da ESACS, membro de Banca Examinadora de Concurso de Ingresso da Magistratura, redator de propaganda, autor de livros e de dezenas de artigos publicados na Itália(www.diritto.it) e no Brasil, ensaísta, cronista, contista, palestrante, fotógrafo e poeta.
ilustrações: Google
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[1] MILAN,Prem.Por que você mente e eu acredito?
[2] MILAN,Prem,p.26.
[3] MILAN,Prem.Op.cit.,p.26.
[4] MILAN, Prem.Op.cit.,p.27.
[5] MILAN,Prem.Op.cit.,p.32.
[6] MILAN,Prem.Op.cit.,p.33.
[7] ROGERS,Carl.Grupos de Encontro.
[8] MILAN,Prem.Op.cit.,p.33/34.
[9] MILAN,Prem.Op.cit.,p.35.
[10] MILAN,Prem.Op.cit.,p.39.
[11] MILAN,Prem.Op.cit.,p.39.
[12] MILAN,Prem.Op.cit.,p.40.
[13] ROGERS,Carl. Faça a coisa certa.
[14] LOWEN,Alexander.Alegria — A entrega ao Corpo e à Vida.
[15] “Mentiras sinceras me interessam”, Cazuza.
[16] MILAN,Prem.Op.cit.
[17] MILAN,Prem.Op.e loc.cit..
[18] Caetano, “Vaca Profana”.

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