sábado, 13 de março de 2010



Retenção Dolosa dos Frutos do Dinheiro.
zé geraldo




O Direito é 1% de ciência e 99% de modismos. Quando você pensa que já viu de tudo, aparece um gaiato que acha que descobriu a pólvora e resolve transformar o juiz em tubo de ensaio. Como às vezes acontece quando o cientista não tem talento para o ofício, o experimento costuma não dar certo e o laboratório explode. No caso da advocacia, costuma explodir no bolso do advogado, e o bolso, como o disse Agostinho Alvim, é o órgão mais sensível do corpo humano.A origem disso eu não sei, mas de uns tempos para cá os advogados deram de pedir, e os juízes de conceder, uma tal indenização pela "retenção dolosa dos frutos da posse".O nome é pomposo. Impressiona. Mas por debaixo disso há um grande equívoco, ou uma indisfarçada má-fé. Os empregados, especialmente se ex-empregados de bancos, caixas econômicas e instituições financeiras e de crédito, têm alegado nas suas petições iniciais que as sociedades empresárias empregadoras retiveram dolosamente parte de seus ganhos, seja sonegando horas extras, seja pagando salário de menos, seja deixando de quitar as rescisórias, e, com isso, se apossaram, de má-fé, dos frutos desses dinheiros. Afirmam, ainda, que o devedor emprestou esse dinheiro a terceiros, com notória vantagem entre o que tinha de lhes pagar e o que cobrou aos emprestantes, e deve, por isso, ser condenado a devolver-lhes a diferença. O fundamento desse engenhoso pedido é sempre o combalido art.1.216 do Código Civil. Esse artigo diz que “o possuidor de má-fé responde por todos os frutos colhidos e percebidos, bem como pelos que, por culpa sua, deixou de perceber, desde o momento em que se constituiu de má-fé”. Parece-me fora de qualquer dúvida razoável que esse artigo somente se aplica à posse, e não às dívidas de dinheiro, tanto que está inserido no Título I, Capítulo III do Código Civil, que trata justamente da posse. Os frutos, a que o art.1.216 se refere, são os frutos do uso da coisa, e não os frutos do uso do dinheiro. Para as dívidas de dinheiro, o Código tem disciplina própria e, para o direito do trabalho, vale a L. nº 8.177/91, que regula suficientemente a lide. De fato, cai em mora quem não paga e o credor que não quer receber no tempo, lugar e forma que a lei ou o contrato dispuserem(Código Civil, art.394). O devedor responde pela mora e pelos juros, além da correção monetária e dos honorários de advogado. Esses são, em rigor, os efeitos do retardamento culposo do pagamento das verbas resilitórias, e nenhum outro( Código Civil, art.395). A doutrina explica, com constrangedora clareza, que possuidor de má-fé é aquele que conhece o vício que macula a sua posse. Lê-se em Aristóteles, “que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo”. Falar em “possuidor de má-fé” implica, por senso lógico, falar de alguém que se apossa indevidamente daquilo que pertence ao outro, daquilo que o outro possuía, de boa-fé, e não possui mais, pela malícia do primeiro. Se a sociedade empresária deixa de quitar horas extras, ou paga salário de menos, ou dispensa imotivadamente um empregado e não lhe paga as verbas rescisórias, não está, até aí, se apossando de nada que pertencesse ao empregado, exceto se se levar ao absurdo de supor que, exercendo sobre o contrato o seu incontestável direito potestativo de resilir, esteja se apossando de um direito expectativo, ou de uma expectativa de direito, ou de um ilíquido e futuro direito de crédito do empregado sobre eventual quantum de verbas indenizatórias. Não é a isso, por óbvio, a que o art.1.216 do Código Civil se refere. Não se pode perder de vista a localização topográfica do artigo. Direito é sistema! O artigo fala da posse, do direito de propriedade, do bem físico que alguém, por malícia, retira ao uso do outro e passa a usar e fruir em proveito próprio. É só por isso que o art.1.216 do Código Civil pune o possuidor de má-fé não apenas com a devolução de todos os frutos que colheu enquanto esteve na posse clandestina do bem, mas também com a restituição daqueles que, por sua culpa, deixou de auferir, e que o verdadeiro possuidor talvez colhesse porque é presumível o seu maior interesse na conservação do seu patrimônio. Se o devedor responde por suas obrigações com todos os seus bens presentes e futuros, o crédito trabalhista do empregado, que tem por fundamento a rescisão imotivada do contrato de trabalho, está garantido pela totalidade do patrimônio do devedor. Se fosse possível aplicar o art.1.216 do Código Civil às dívidas de dinheiro, o empregado, possuidor de boa-fé, teria de provar, primeiro, que o devedor se apossou, de má-fé, daquilo que lhe pertencia, mas já se viu que o que garante a obrigação decorrente da terminação do contrato de trabalho é a totalidade do patrimônio do devedor, e não este ou aquele bem, e, depois, que, de posse clandestina daquilo que lhe (ao empregado) pertencia, o devedor negociou no mercado a juros abusivos e obteve ganho que, como frutos do dinheiro, deveriam ser repassados ao verdadeiro possuidor. Numa palavra, o empregado teria de provar, além da má-fé do patrão, que o patrão emprestou com usura o seu (do empregado) dinheiro, e não qualquer dinheiro em caixa. Ora, se esse raciocínio fosse rigorosamente exato, o devedor que quebra, ou cai em mora, ou não honra obrigações de pagar por inadimplemento, ou pede recuperação judicial, nada teria de pagar aos empregados, seus credores, porque o simples insucesso do empreendimento seria prova bastante de que, mesmo retendo indevidamente o dinheiro que, em tese, pertencia aos empregados, nada lucrou com isso, e tanto não lucrou que foi à falência ou pediu recuperação judicial porque a bancarrota era iminente, e se, mesmo de má-fé, nada lucrou, nada tem de restituir.É certo que, por expressa autorização do art.769 da CLT, nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com suas normas.Notem bem: o empréstimo subsidiário de regras que a CLT permite é de direito processual, já que nisso a CLT não tem um sistema, seja por que não temos(não temos ainda) um Código de Processo do Trabalho, seja por que a estrutura da CLT não considera a fase executória da sentença uma disciplina separada da cognição, e tanto não considera que ela própria determina ao juiz iniciar de ofício a execução. O art.1.216 do Código Civil é de direito material. Nessa parte - direito material -, a CLT é completa e não precisa de empréstimos.
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1.O autor é Juiz do Trabalho no Rio de Janeiro(7ª Turma) e não tem a menor paciência para certas invenções...
2.Ilustração:http://moreira.blogsome.com/images/thumb-foto_tubo_ensaio.jpg

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