O francês parisiense.
zé geraldo
Eu fazia mestrado em processo civil na PUC de São Paulo e um certo professor cujo nome não revelo para evitar problemas com a lei trouxe para palestrar na USP um professor francês que era uma espécie de Gisele Bündchen da época, só que um pouco mais de bunda. Metido, o professor foi logo avisando:
― Muito que bem! Suponho que todos os senhores doutores falem e escrevam fluentemente francês. Nosso convidado é parisiense, portanto fala um francês de grande erudição e absoluta inteligibilidade. Não haverá tradução.
Ui! Até hoje eu gostaria muito de saber o que foi que esse sujeito falou naquelas duas horas e quarenta de um sábado calorento nas Arcadas da famosíssima Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Na minha frente, tinha uma judia magricela que parece ter entendido absolutamente tudo o que o gringo falava. Assentia com a cabeça, parava, fazia anotações. Eu, ali, logo na primeira fila, sem entender uma vírgula de francês, arrependidíssimo de ter chegado cedo demais e de ter sido posto exatamente na bendita primeira fila porque o bedel disse que a preleção seria concorridíssima, segui o exemplo da magrela. Quando o professor dava uma ênfase na fala, eu assentia exageradamente com a cabeça, como se tivesse entendido tudo, e concordado com absolutamente quase tudo. Me virava de lado, na direção da magricela, fitava a judia nos olhos, com ares de “viu só, que profundidade?”.Ela concordava comigo, assentindo também com a cabeça e sorrindo discretamente, como quem diz, “Não falei?”. Uma completa interação mímica. Pasmem, senhores!: em “francês parisiense!”. Vendo aquela perfeita simbiose nossa, o professor se entusiasmava, levantava a voz, parava, tomava água, enxugava a testa, afrouxava uma gravata esquisitésima que não tinha nada a ver com um paletó todo amarrotado e fora de moda. Teve uma hora em que ele desplugou o microfone e ficou em pé.Foi a glória!Aí mesmo é que eu não entendi absolutamente nada! A judia magricela, não! Quase teve um orgasmo. Pensando melhor, teve! Ao final, encheu o sujeito de perguntas. Tudo em francês! Eu saí de fininho, em claro sinal de desaprovação do teor da palestra e do conteúdo das impressões pessoais do Ilustre Professor. Na saída, um sujeito gordinho, de gravatinha borboleta, terno risca-de-gis preto de tecido irlandês, suponho, pela finura da aparência e pela elegância do talho, e que eu nunca tinha visto na vida, aparteou-me educadamente, puxando prosa:
― Data venia, o nobre colega não vai ficar para o debate?
Eu, que naquela época atendia ao balcão da 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de São Paulo e não tinha grana nem pra comer, respondi-lhe, polidamente, como mandava a etiqueta en France:
― Não, colega, data venia, infelizmente não posso. Um desastre completo! Tomo o voo das 19 horas para o Rio, onde tenho uma reunião importante com um cliente exportador de componentes eletrônicos e não posso me atrasar. Qualquer coisa, depois pego anotações com os colegas. Mas, a propósito, se o nobre colega me permite uma inconfidência, tenho de admitir: não concordo com algumas ideias do professor, que já conhecia de um seminário na Universidade de Lion, especialmente quando ele se refere à dinâmica do direito ou à sua dessincronia em face da estigmatização da cultura, mas que os seus argumentos são, na maioria, absolutamente irrespondíveis, ah!, isso o são.
Eu nem sabia se existia esse negócio de "dinâmica do direito", "dessincronia ou estigmatização da cultura". Pra ser sincero, nem sei se o tal professor falou algo parecido. Eu não entendo merda nenhuma de francês! Ouvi um som lá, parecido com dinamique e estigmatización e “je sui”, mas bem podia ser que o sujeito estivesse se referindo a dinamite, fornicação e caqui, ou tenha tido a indelicadeza de revelar que era uma tal de “Dominique Mignon que eu comi”. Sei lá! Falei só pra tirar onda. O cara também não deixou por menos:
― E-xac-te-ment!, caprichou no francês, assim, “parisiense”, pausado em cada letra. Acho que era a única palavra que aquele bosta conhecia do idioma. Respirou fundo e arrematou:
― Concordo inteiramente com o nobre colega!
Ô, raça! Só matando! Depois dessa palestra, perdi o gosto pelos franceses e pelo francês.Especialmente o parisiense.E também abandonei o mestrado na PUC, mas aí já foi por falta de grana.“D’argent”, se é que me entendem...
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1.O autor é Juiz do Trabalho no Rio de Janeiro(7ª Turma), Especialista em Processo Civil pela PUC/SP, Mestrando em Direito Processual Civil com Ênfase nas Relações de Trabalho pela Universidade Federal Fluminense/Escola Judicial do TRT/RJ, Presidente do Conselho Consultivo da Escola de Capacitação de Funcionários do TRT/RJ,Membro da Comissão de Jurisprudência do TRT/RJ, autor de livros e artigos publicados no Brasil e na Itália(www.diritto & diritti.it).
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