“Venire contra factum proprium"
(Ninguém pode contravir o próprio fato)
zé geraldo
zé geraldo
Ao tempo em que vigeram as Ordálias, ou “juízos de Deus”, o ônus da prova não competia necessariamente àquele que se dizia titular de um direito cujo fato tinha de provar, mas à mão de Deus. Assim, ad esempio, se um tecelão ofendesse a um lenhador, ambos deveriam bater-se em praça pública com “as armas de seu ofício”. Deus daria razão ao vencedor. A “arma do ofício” do tecelão era, em regra, uma agulha tosca, pouco mais comprida que sua mão espalmada, e a do lenhador, um machado pesado, de lâmina ameaçadora, grudado a um cabo de guatambu de quase um metro. Embora não seja prudente duvidar da justiça divina, é pouco provável que a “mão de Deus” alcançasse o tecelão e sua agulha antes que o machado do lenhador lhe decepasse a cabeça, mas se era essa a vontade de Deus, contra a vontade de Deus não havia querer, e a “justiça” fora feita. Pelo mesmo sistema de regras canônicas, se uma mulher fosse colhida em adultério, seria lançada, em praça pública, num grande tacho de óleo fervente. Se estivesse com o coração puro, flutuaria. Não se tem notícia segura de quantas flutuaram, mas é provável que a fervura tenha engolido até as de alma pura — saio em defesa da classe: eram muitas! —, o que serviu, pelo menos, para demonstrar a fragilidade do sistema de partição do encargo probatório. Cá entre nós, houve um tempo, não vai por muito, mas bem antes da declaração juramentada, da assinatura digital e das chaves criptográficas, que um “fio de bigode” garantia o empenho da palavra do homem. Consistia apenas nisso: o sujeito apalavrava uma obrigação, punha sobre a mesa do credor um fio de seu bigode e tanto bastava para dizer-lhe que honraria o negócio porque era já um homem feito, tinha bigode e barba e, pois, vergonha na cara. Não há certeza sobre a origem da palavra “bigode”, mas os léxicos costumam ensinar que provém da expressão germânica “bi Gott”, “por Deus”, pronunciada nos juramentos .Doutores muito copiados dizem que com o advento do Código Civil de 2002 o “fio do bigode” passa a viger como regra. A obrigação deixa de ser um vínculo entre dois sujeitos para traduzir relação de cooperação e, a par de tudo o efetivamente contratado, as partes também se obrigam a um sem-número de deveres fiduciários,chamados acessórios, correlatos, anexos ou instrumentais, que, conquanto não escritos, servem de moldura ao conteúdo ético da relação obrigacional. A obrigação passa a ser vista como processo, onde o credor se obriga, da mesma forma que a contraparte, a concorrer para que o negócio se ultime sem prejuízo ou ônus além dos normalmente esperados. Não interessa a esse novo direito o homem como mero endereço da lei, mas como pessoa concretamente considerada. Em palestra proferida na EMERJ, em 8/3/2002, a Profª Judith Martins-Costa disse da necessidade de admirar-se a arquitetura do novo Código Civil a partir da análise interna dessa relação obrigacional. Esse olhar endógeno substitui a leitura descritiva dos seus elementos externos — sujeito capaz, objeto lícito, forma prescrita ou não defesa em lei etc —,até então ícones normativos da dogmática tradicional, por outra, do "conteúdo das situações jurídicas subjetivas concretamente consideradas”. Numa palavra: busca-se o direito concreto, e não o direito como objeto de contemplação. Tal releitura dos perfis da obrigação mostra que deveres não-expressos são tão ou mais vinculantes que os naturalmente contratados. No redesenho da obrigação — inclusive a que serve de base a toda relação de emprego —, a vontade é ainda sua “causa efficiens” ,mas o olhar é necessariamente introspectivo. Se obrigação é solidariedade e colaboração, então o contrato deve transpor a cerca daquele estado anímico em que bastava exercer um direito para se supor que se agia de boa-fé. É desejável que os contratantes concorram mutuamente para que tudo o que foi ajustado — mesmo que não se tenha formatado expressamente — chegue a termo sem qualquer prejuízo (neminem laedere). Deveres inexpressos podem transcender a pessoa do contraente e repercutir na esfera íntima da contraparte,despertando-lhe confiança legítima, que deve ser tutelada, seja inibindo conduta contrária à que despertou a confiança,seja impondo indenização do prejuízo decorrente da conduta desfeita. Nos contratos de trato sucessivo, como os de trabalho, em que a contraprestação principal (salário, em suas diversas formas) tem nítido caráter alimentar, e onde predomina o poder diretivo do senhorio, dono da empresa — rectius: da atividade negocial —, por conta da subordinação jurídica onde não há garantias efetivas de intangibilidade de salário, o emprego se rarefaz, o trabalhador se coisifica, a proteção sindical é uma quimera e troca-se uma lei por outra por trinta dinheiros, a proibição do comportamento contraditório é indispensável para tutelar aquelas situações jurídicas desbeneficiadas da guarida do direito posto. O direito do trabalho é terreno de excelente topografia para o estudo da tutela da confiança porque o seu elemento nuclear é o contrato de trabalho, que se arrima na fidúcia (confiança). Sendo de atividade, e sem conteúdo específico, resume obrigação de fazer, que põe o patrão na condição de credor e o empregado na situação jurídica de devedor do trabalho. A base ética dessa relação é a fidúcia, tanto que, esvaída essa, se desfaz a relação de emprego.
Conceito
“Venire contra factum proprium” quer dizer, em síntese, que ninguém pode contravir o próprio fato, isto é, combinar uma coisa, despertar na contraparte uma expectativa legítima e, sem mais nem outra, desdizer o que foi apalavrado e ficar imune a qualquer indenização. Conquanto não haja regra expressa de proibição do comportamento contraditório no sistema de direito positivo brasileiro, tal não obsta a que se infira o princípio de inúmeros dispositivos esparsos no Código Civil. A ideia de que ninguém pode contravir o próprio fato — “nemo potest venire contra factum proprium”— nas relações negociais é antiga. Por volta de 1.230, Azo, professor da Universidade de Bolonha, reuniu na Brocardica um punhado de adágios jurídicos pinçados dos antigos textos romanos e é esse o primeiro registro de que o nemo potest venire contra factum proprium já era conhecido no direito antigo. Em 1912, Erwin Riezler, professor da Universidade de Freiburg, recolheu nos glosadores e pós-glosadores do direito romano o esboço do princípio da proibição do comportamento contraditório, e publicou Venire contra factum proprium — Studien in Römischen, Englischen und Deustschen Civilrecht, disseminando o conceito, a partir de então. Com a proibição do comportamento contraditório não se quer anular a liberdade de mudar de opinião, mas neutralizá-la, sempre que esse segundo comportamento puder causar prejuízo a quem tenha confiado na manutenção do comportamento inicial. Proibir o comportamento contraditório significa, em suma, “tutelar todas as expectativas legítimas despertadas no convívio social, independentemente de qualquer norma específica”, porque todos os fatos sociais, qualquer que seja a sua significância, têm juridicidade. Essa é a sua função inibitória. Há outra — reparatória —, consistente em obrigar ao desfazimento da conduta que contraria o fato próprio — se e quando isso for possível — ou à reparação do prejuízo daquele que cultivara legítima expectativa na continuidade do primeiro comportamento anunciado. Seja por uma ou outra função — proibitiva ou reparatória —, o venire é quase um princípio geral de direito que visa à tutela da confiança e à proteção da boa-fé objetiva. Boa-fé e ética são as duas faces de uma só moeda. O conceito de boa-fé se extrai do de dolo, que dolo é o oposto de boa-fé. Se a boa-fé, que é a consciência de não agir ilicitamente, exclui o dolo, segue-se que o dolo outra coisa não é senão o agir com a consciência da ilicitude da ação. Quando se diz que se deve interpretar tanto o negócio jurídico quanto o contrato de acordo com a boa-fé objetiva, fala-se em boa-fé normativa, isto é, aquela que pressupõe que todo negócio jurídico é fundado na lealdade e na transparência. Não se trata mais da boa-fé subjetiva, como um estado anímico, de consciência, mas de uma conduta apartada das intenções íntimas do contratante, que exige comportamento sinceramente comprometido com os princípios de lealdade, honestidade e colaboração a fim de que se alcancem os fins pretendidos. Esse dever de cooperação tem um caráter negativo — o de abster-se de praticar qualquer ação contrária aos interesses da contraparte — e outro positivo — cada contratante se obriga a agir na execução do contrato da forma mais leal, honesta e transparente possível, de modo que a obrigação se cumpra com o menor sacrifício para ambos os envolvidos —.Somente assim se atinge a concretude do direito. Não basta a ausência da intenção de prejudicar para que se reclame a proteção do direito. É preciso correttezza (lealdade), isto é, concurso efetivo de ambos os contratantes para que o contrato se perfaça sem que qualquer dos consortes se prejudique, ou se onere além do normalmente esperado. Ou seja: que todo negócio jurídico seja entabulado sem dolo, com a volição de não prejudicar. É esse mesmo dever de retidão que se supõe desejado efetivamente pelas partes na conclusão do negócio o que autoriza ao juiz a velar pelo conteúdo ético do contrato, isto é, permite-lhe intervir na relação privada para considerar que certos deveres adicionais são exigíveis, ainda que não previstos expressamente, ou sequer lembrados, porque defluem daquela intenção de não se locupletar à custa do outro, de não emperrar a conclusão do negócio sem causa relevante e de não enganar a ninguém, coisas que são da essência da boa-fé objetiva. Enquanto a boa-fé subjetiva diz com o comportamento reto e probo, a objetiva vincula-se ao estado de confiança despertado na contraparte. O que distingue a boa-fé subjetiva da objetiva é que, na primeira — subjetiva —, o agente se conforma com o seu estado psicológico de supor que não está prejudicando a ninguém, ao passo que, na outra — objetiva —, o agente se obriga a se comportar de uma determinada forma, e não de uma forma qualquer, e essa forma de comportar-se implica, de algum modo, abster-se de tudo o que possa prejudicar, dificultar ou impedir o cumprimento da obrigação e, mais ainda, a de colaborar efetivamente com a contraparte na ultimação do negócio. Quer isso dizer, em resumo, que na aferição da boa-fé subjetiva, se considera a intenção da parte, o seu estado psicológico no momento de contrair a obrigação, com o que a má-fé passa a ser todo comportamento eivado da intenção (volição) de prejudicar a outra parte. Na boa-fé subjetiva, a parte crê, ainda que de modo errado, que pratica o ato no exercício do seu direito, dentro do que foi pactuado, e não lhe acorre que nesse exercitar possa estar prejudicando o direito de outrem. Na boa-fé objetiva, cumpre a cada contratante portar-se com lealdade e correção, vedada a malícia, o ardil, a astúcia que leva à obtenção de vantagens extorsivas a prejuízo da confiança da contraparte. O juiz deve interpretar o contrato e os termos da obrigação como um todo, fazendo incidir sobre o seu juízo de valor “módulos valorativos do sistema”, isto é, avaliando objetivamente se estão (ou podem estar) presentes ao negócio jurídico princípios como os da autovinculação, autorresponsabilidade, função social, equilíbrio das prestações e boa-fé. Numa palavra: o juiz não deve permitir que o contrato atinja finalidade oposta àquela que as partes pretenderam atingir, ou diversa daquela que, considerada a natureza do contrato em si mesma, seria lícito esperar. A última função normalmente atribuída à boa-fé objetiva é inibitória, isto é, a de impedir o exercício de um direito aparentemente lícito, mas que contraria a lealdade e a confiança que se exigem nas relações privadas. O comportamento que se inibe não é ilícito, tanto que a doutrina fala em exercício inadmissível de um direito. O que se proíbe é que uma parte, valendo-se do contrato, exerça frente à contraparte um direito que viole a regra geral acessória de que aquele que exerce um direito tem o dever de levar em conta os interesses e as justas expectativas do outro. É, em resumo, a obrigação de abster-se do exercício de um direito se for razoavelmente possível supor que esse exercício quebrará a justa expectativa da outra parte. É o dever de não se comportar de forma lesiva aos interesses e expectativas legítimas despertadas no outro. Como freio ao exercício dos direitos subjetivos, cabe-lhe encontrar o sentido genuíno do contratado, depurando-o de qualquer deformação que decorra da interpretação dúbia ou maliciosa que objetive tirar vantagem indevida do outro contratante. Para que o comportamento contraditório seja proibido é preciso que haja (1º) uma conduta inicial — factum proprium —, (2º) uma confiança legítima da outra parte na conservação desse comportamento, (3º) um comportamento que se contraponha ao primeiro e (4º) um dano efetivo ou potencial que decorra necessariamente do segundo comportamento. O fato próprio — ou conduta inicial — é qualquer comportamento da parte, até mesmo o antijurídico ou o não vinculante. É todo acontecimento derivado da atuação humana. Basta que desse comportamento derive ou possa derivar um comportamento da contraparte fundado na confiança razoável de que não será abruptamente alterado para que se erija a proibição de que seja modificado. Ao venire não é relevante se a conduta inicial é jurídica ou antijurídica ou se o comportamento contraditório foi acidental ou objetivamente desejado com a intenção de prejudicar. Importa saber se aquela conduta inicial é ou não vinculante, isto é, se é ou não suficientemente apta a despertar na contraparte a legítima confiança de que não seria contrariada, e qual o prejuízo potencial ou efetivo causado na parte que, de boa-fé, confiou na conduta do outro. Como dito, não é a quebra de qualquer confiança que enseja a sua aplicação, mas a da que decorre razoavelmente de uma adesão legítima ao conteúdo do primeiro comportamento. A conduta capaz de gerar confiança legítima não precisa ser vinculante nem juridicamente relevante. Basta que transcenda a esfera íntima daquele que a pratica e seja capaz de repercutir sobre outras pessoas. Essa transcendência é eminentemente fática porque o fato próprio nasce à margem do direito positivado. Saber se dada conduta não hospedada pelo direito positivo transcendeu a pessoa do praticante e repercutiu eficientemente na contraparte é questão de fato, que somente pode ser vista caso a caso. Um mesmo comportamento pode repercutir de diversas formas e com intensidade variada em várias pessoas, ao mesmo tempo, de acordo com fatores culturais, sociais, religiosos, educacionais e etários, como pode repercutir na mesma pessoa de diversos modos, em duas ou mais situações de fato diferentes, espaçadas no tempo. Trocando em miúdos, confiança legítima é a que deriva de uma conduta imputável à outra parte no sentido de que poderia se acomodar à situação informada pelo comportamento inicial por absoluta ausência de qualquer indício de que aquela primeira conduta pudesse ser alterada no curso da relação obrigacional ou do contrato sem a interferência de qualquer fato alheio à força ou à vontade dos contratantes.
Uma hipótese muito comum
São tristemente comuns na Justiça do Trabalho ações trabalhistas em que empregados públicos, contratados pelo regime da CLT, reclamam dos entes públicos empregadores, notadamente empresas públicas e de economia mista, reajustes de salários ou outros benefícios contratuais pactuados livremente entre essas sociedades empresárias públicas e os sindicatos representativos dessas categorias profissionais. Em regra, os réus reconhecem o direito e o débito, mas procuram eximir-se da obrigação de pagar alegando não disporem de dotação orçamentária ou não terem obtido previamente autorização dos órgãos públicos aos quais estão subordinados para pagar aquilo a que normativamente se obrigaram perante a categoria profissional. Há, para mim, nessas hipóteses, evidente comportamento contraditório. Se o ente público dependia de autorização superior para contratar o benefício normativo, que o obtivesse antes, e não depois de firmar o contrato com a categoria profissional. Se não tinha dotação financeira prévia, que a provesse antes de negociar. O que não pode é prometer pagar, reajustar, conceder e, depois de despertada na categoria laboral a confiança legítima, desdizer-se, sem fundada razão de direito, ou sem modificação substancial nas razões de fato existentes ao tempo da celebração do negócio jurídico.
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1.O autor é Juiz do Trabalho no Rio de Janeiro(7ª Turma).
2.Ilustrações: http://polacodabarreirinha.files.wordpress.com/2009/06/nietzche-by-fernandes.jpg
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1.O autor é Juiz do Trabalho no Rio de Janeiro(7ª Turma).
2.Ilustrações: http://polacodabarreirinha.files.wordpress.com/2009/06/nietzche-by-fernandes.jpg
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