sexta-feira, 5 de março de 2010



Trabalho Voluntário,Piedoso e Religioso e “Venire Contra Factum Proprium”.
zé geraldo



A expressão latina "nemo potest venire contra factum proprium" significa, grosso modo, que ninguém pode vir contra o próprio fato, isto é, contrariar,empenhar o compromisso de agir de determinada forma, gerar na contraparte expectativa legítima e,sem razão relevante, desdizer-se, frustrando a boa-fé objetiva do outro contratante. Essa regra ética, própria do comércio jurídico, se aplica, às inteiras, ao contrato de trabalho, desde o momento de seu ajuste até a sua efetiva terminação.



Conceito de "trabalho voluntário".

São comuns no foro trabalhista ações pretendendo o reconhecimento jurídico do vínculo de emprego de voluntários ou de pessoas ligadas a entidades filantrópicas, beneficentes, religiosas ou assistenciais por vínculo social ou religioso. O trabalho voluntário refoge ao âmbito do direito do trabalho. Entende-se por voluntário todo trabalho não remunerado prestado por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada sem fins lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social. Já que ausente a onerosidade(remuneração), a lei não estipula se no trabalho voluntário deve ou não haver subordinação jurídica. O trabalho voluntário é prestado às políticas públicas ou sociais em atenção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, assim como a pessoas portadoras de necessidades especiais, à criança e ao adolescente carentes e aos programas de assistência educacional ou de saúde gratuitos. Não gera vínculo de emprego nem acarreta qualquer obrigação de natureza trabalhista, tributária ou previdenciária ao tomador desses serviços. As despesas que o prestador do serviço voluntário comprovadamente tiver contraído no desempenho do serviço voluntário devem ser ressarcidas, o que evidentemente não tem natureza jurídica de salário. Como é um tipo de relação jurídica que permite espaço para a fraude, é preciso não esquecer os fundamentos do direito do trabalho. Contrato individual de trabalho é o acordo tácito, ou expresso,que corresponde à relação de emprego. Sendo expresso, pode ser escrito ou verbal. Se tácito, as partes efetivamente não combinam o contrato, mas comportam-se de tal modo na execução de suas cláusulas espontâneas que a lei, a priori, diz que aquele comportamento deve ser interpretado como um autêntico contrato de trabalho. Depura-se o conceito de contrato de trabalho do exame dos conceitos de empregador e de empregado. Empregador é a empresa(atividade), individual ou coletiva que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal dos serviços. Empregado é a pessoa física que presta serviços salariados e não eventuais juridicamente subordinados a outra pessoa física, formal ou jurídica.

Requisitos do "trabalho voluntário".

Para que o trabalho voluntário não abra portas à fraude, a lei exige assinatura de um termo de adesão entre a entidade pública ou privada e o prestador do serviço voluntário. Esse termo não configura contrato de trabalho. Abstraídas as hipóteses de engodo, o trabalho tipicamente voluntário não se iguala à prestação de serviços subordinados porque é gratuito, não exige subordinação jurídica e é sempre a prazo certo.O prestador do serviço voluntário sabe, desde o início, que a prestação do serviço voluntário não gera vínculo de emprego porque isso consta da própria lei do serviço voluntário, já que as condições em que é prestado em nada se assemelham àquelas de um empregado em sentido estrito. A despeito disso, ações trabalhistas pretendendo o reconhecimento de vínculo na hipótese de trabalho voluntário são comuns. É sobremodo evidente que o sedizente empregado, ao residir em juízo reclamando vínculo de emprego e indenização do “contrato”, pela CLT, contraria o fato próprio(“venire contra factum proprium”), pois quebra a confiança legítima da entidade contratante de que, tendo se comportado na assinatura do termo de adesão de trabalho voluntário com absoluta transparência, poderia razoavelmente esperar que o prestador do serviço voluntário não a demandasse posteriormente, pondo sob suspeição justamente todas aquelas certezas jurídicas que, com correttezza, deu ao tomador do trabalho voluntário no momento da adesão. Dito de outra forma, a conduta inicial do ente tomador do trabalho voluntário em nenhum momento transcendeu à pessoa da entidade contratante para despertar no prestador do trabalho voluntário qualquer expectativa legítima que não fosse a de prestar um trabalho voluntário, inteiramente gratuito, benemerente, de relevante importância social, de prazo certo e sem qualquer subordinação jurídica. Por mais que a conduta do tomador se revestisse de certo poder de ingerência nas atividades do prestador, o trabalhador voluntário não poderia, validamente, supor que estivesse sendo contratado como empregado.

Padres, ministros religiosos e professadores de fé.


Da mesma forma, contradizem o fato próprio aquelas ações trabalhistas em que ministros religiosos e outros professadores de fé recorrem ao judiciário pretendendo transmudar o vínculo de fé em de emprego, e, com isso, embolsar vultosas quantias à custa das igrejas a que pertenceram e das quais se afastaram pelo esmorecimento da fé ou por questões internas, quase sempre de foro íntimo. Para o direito, igrejas são pessoas jurídicas de direito privado. Vistas em si mesmas, são comunidades morais sem fins lucrativos, estruturadas sobre normas de conduta religiosa de origem divina, que supõem regular a relação entre os homens e Deus. A natureza jurídica da atividade religiosa é de estado eclesiástico. O vínculo que liga o ministro religioso e sua congregação é de ordem moral e espiritual. Se a atividade desenvolvida pelo religioso for essencialmente espiritual, desenvolvida dentro ou fora da congregação, mas sempre imbuídas do espírito de fé, a regulação desse trabalho se faz pelo direito canônico, e não pelo direito do trabalho, porque essa atividade decorre do espírito de seita ou de voto, e não de subordinação jurídica. Esse vínculo dirige-se à assistência espiritual e moral para a divulgação da fé. Não pode ser apreçado, ainda que o religioso receba com habitualidade certos valores mensais. Tais valores destinam-se à sua assistência e subsistência e, também, para livrá-lo das inquietações mortais para que melhor possa se dedicar à sua profissão de fé. Não têm a natureza retributiva e sinalagmática do salário, em sentido estrito. O trabalhador laico, que não tem vínculo moral com a congregação, como por exemplo o sacristão, o zelador, o carpinteiro, os faxineiros, organistas, decoradores, campanários etc, e que não presta serviços em caráter devotionis causa, pode celebrar contrato de trabalho com a igreja se satisfizer os pressupostos dos arts.2º e 3º da CLT. Sacerdotes, freiras, diáconos e ministros religiosos que, a par das suas funções evanglélicas, prestem serviços em condições especiais como professores, enfermeiros, instrutores de educação física, de culinária,de encadernação e de ilustração, técnicos em informática, revisores e redatores, entre outras, poderão vir a ter seus vínculos de emprego reconhecidos se provarem que essas atividades não guardam qualquer relação com a vida monástica ou religiosa.Configura óbvia quebra da confiança legítima da igreja a ação trabalhista em que o religioso, deslembrado dos votos de fé, pede o reconhecimento jurídico do vínculo de emprego. Ao professar o voto, o religioso sabe, desde o início, que se liga à sua comunidade moral por um vínculo de fé, e não de emprego. A igreja, quando o aceita entre os seus, não se comporta de modo a despertar na confiança desse membro a impressão de que está sendo aceito como empregado, ainda que dentre as suas funções correlatas à de professar a fé sejam incluídos a divulgação e o comércio de assinaturas de revistas, anúncios de publicidade e venda de porta em porta de revistas e outros artigos religiosos.
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1.O autor é Juiz do Trabalho, membro efetivo da 7ª Turma do TRT/RJ, Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP, mestrando em Direito Processual Civil pela Universidade Federal Fluminense — UFF — e Escola da Magistratura do Trabalho do Rio de Janeiro — EMATRA—, Membro da Comissão de Jurisprudência do TRT/RJ, Presidente do Conselho Consultivo da Escola de Capacitação de Funcionários do TRT/ RJ — ESACS —, membro do Conselho Pedagógico da Escola Superior de Advocacia Trabalhista de Niterói — ESAT —, professor universitário e de cursos preparatórios para concursos públicos, membro de bancas examinadoras de concurso de ingresso na Magistratura do Trabalho, autor de livros jurídicos, autor de artigos jurídicos publicados no Brasil e na Itália(http://www.diritto.i/).

2.O artigo "Trabalho Voluntário, Piedoso e Religioso e “Venire contra Factum Proprium” foi publicado originariamente na Itália e localiza-se em FONSECA, José Geraldo, Trabalho Voluntário, Piedoso e Religioso e “Venire contra Factum Proprium!, Diritto &Diritti — Rivista elettronica, publicata su internet all’indirizzo http://www.diritto.it, ISSN 11278579,gennaio 2010, disponibile in http://www.diritto.it/materiali/straniero/dir_brasiliano/index.html, acesso em 13/1/2010.2.

3. Foto do autor em arquivo pessoal by Rafaela.
4.As ilustrações do texto acham-se em http://tinypic.com/view.php?pic=29q1mkz&s ehttp://biaemariogama.sites.uol.com.br/anjinhos/anjinho3.gife
5. Os fundamentos jurídicos em que o artigo se fia leem-se em:
  • CLT,arts.442 e 443.
  • Disciplinado pela L.nº 9.608, de 18/2/98.
  • CC/2002,art.44,IV.
  • BARROS, Alice Monteiro de.Curso de Direito do Trabalho.Ed.RT,São Paulo,2ª ed.,2006,p.438 e 441.
  • GALANTINO,Luísa. Diritto del Lavoro. Torino: Giappiachelli Editore, 2000,p.14.

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