domingo, 7 de março de 2010



Todos são iguais perante a lei.
zé geraldo



No livro “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell, mesmo autor de “1984”, que inspirou os programas “Big Brother” que infestam as televisões do planeta, os animais, cansados dos maus-tratos dos proprietários, decidem fazer uma revolução e tomar o poder na fazenda. Faz-se a revolução à custa de muito sangue e os homens são finalmente expulsos da mataria. Os porcos, líderes dessa revolta, propõem escrever na parede do estábulo as novas regras da vida na propriedade, e entre elas está uma que dizia assim: “Todos os animais são iguais”. Como acontece em toda revolução, muito depressa os revolucionários tomam gosto pelo poder e passam a ser, eles próprios, tiranos ainda mais ridículos que os governantes expulsos a pontapés. Os porcos, os mais valentes naquele histórico combate, se apossam do poder e passam a ditar as ordens na propriedade, reivindicando para si e para seus bacourinhos as melhores maçãs, as mais apetitosas espigas de milho e mais puro leite ordenhado pela manhã. Logo passam a beber, a negociar com os homens das fazendas vizinhas, a andar sobre duas patas calçando botas de couro, e trazem sempre à mão longos chicotes, por meio dos quais impõem a disciplina entre os seus companheiros de luta. Os animais têm agora apenas uma vaga lembrança daquele dia memorável em que expulsaram os homens da fazenda, mas desconfiam que um dos lemas da revolução — o de que todos os animais eram iguais — não estava sendo cumprido pelos porcos. Na calada da noite, enquanto os suínos se divertiam entre rodadas de pôquer, uísque de fina procedência e algazarra na sede principal da fazenda, vão ao estábulo, e ali, em meio à poeira que sobrara da lonjura dos acontecidos, leem a regra da qual tinham vaga lembrança: “todos os animais são iguais”. Mas alguém tinha acrescentado um pedaço: “mas alguns são mais iguais que os outros”. Eles não se lembravam desse acréscimo, mas isso agora não fazia nenhuma diferença.Em decisão inédita, o STJ reconheceu, pelas mãos da ministra Nancy Andrighi, que uma vez comprovada a união homoafetiva, o companheiro sobrevivente tem direito a receber os benefícios previdenciários decorrentes do plano de previdência privada cujo titular era o companheiro morto, com os mesmos efeitos decorrentes de uma união estável. Até então, esse critério de equidade só era admitido no Regime Geral de Previdência Social. O TJ do Rio de Janeiro eximiu a Caixa de Previdência do Banco Brasil — PREVI — da obrigação de pagar pensão ao autor da ação, como decorrência do falecimento do companheiro, com quem vivera durante 15 anos. Para o TJ carioca, a L.nº 8.971/94, que regula os direitos dos companheiros aos alimentos e à sucessão do morto, não se aplicava à relação entre parceiros do mesmo sexo. Nancy Andrighi é uma mulher do seu tempo. Pensa com a própria cabeça, e é cabeça arejada. Para ela, a união afetiva entre pessoas de mesmo sexo não pode ser ignorada em uma sociedade onde os laços afetivos e familiares são tênues, complexos, provisórios, e dar interpretação estrita a essa lei é aprofundar o preconceito e fulanizar as pessoas. Fere-se, com isso,  a dignidade da pessoa humana e o direito à opção sexual. Ao que disse, o vazio legislativo sobre o ponto não livra o juiz da obrigação de resolver do modo mais justo possível as querelas que diariamente são despejadas no quintal dos tribunais clamando solução prática. Faço minhas as palavras suas:”Se por força do artigo 16 da Lei n. 8.213/91, a necessária dependência econômica para a concessão da pensão por morte entre companheiros de união estável é presumida, também o é no caso de companheiros do mesmo sexo, diante do emprego da analogia que se estabeleceu entre essas duas entidades familiares”. Ao que disse, “demonstrada a convivência entre duas pessoas do mesmo sexo, pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, haverá, por consequência, o reconhecimento de tal união como entidade familiar, com a respectiva atribuição dos efeitos jurídicos dela advindos”. Esse voto — lúcido, moderno, vanguardeiro— evoca em mim uma imagem impressionante. É como se alguém, na calada da noite, voltasse ao estábulo daquela fazenda de que nos falou Orwell, e apagasse de um dos lemas da revolução aquela frase infeliz aposta depois de “todos os animais são iguais”. Concordo inteiramente com a ministra. Todos são iguais perante a lei. As leis é que são diferentes! A lei não muda o fato. É o fato que muda a lei. Que bom que Nancy Andrighi sabe disso! Ainda há esperança.
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1.O autor é Juiz do Trabalho no Rio de Janeiro(7ª Turma).

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