quarta-feira, 24 de março de 2010





A Vaca da Mulher do Síndico.
zé geraldo



O art.2º da convenção do condomínio era de clareza solar:“é expressamente proibida a presença de animais vivos nos apartamentos”. Não sei de quem foi a ideia de incluir na cláusula a expressão “vivos”, logo após “animais”. Desconfia-se que foi do dono da cantina, pra evitar que algum engraçadinho questionasse aquele monte de gatos defuntados que ele mantinha no freezer e vendia aos pinguços do prédio como “espetinhos de picanha”. No começo, a cláusula trouxe um complicador: alguns condôminos questionaram a “natureza humana” de uns três adolescentes do bloco III, que tocavam a maior bacanal no prédio, fumavam maconha no corredor, mijavam nas lixeiras e ouviam Nina Haagen num volume tão alto que o prédio chegava a tremer. A ideia desses condôminos era invocar a cláusula para expulsar esses filhos-da-puta, digo, esses “jovens” do prédio, sob o argumento de que eram uns animais, e ainda por cima vivos, o que esbarrava na proibição da cláusula. A ideia não vingou por causa dos direitos humanos, do PT, da Santa Madre Igreja, essas coisas. Os merdas estão lá até hoje. Um deles virou viado, mas eu nem sei que importância tem essa questão da viadagem para o enredo do que aqui vim contar. Deixa pra lá. Dizem que a gostosona do 402 perguntara se “planta pode”, prova de que não sabia distinguir entre uma picanha-mal-passada e um comigo-ninguém-pode. Uma bichinha do bloco I, destaque da Acadêmicos do Barranco, desenhou pra ela uma samambaia-renda-portuguesa e um tiranossaurus rex, mostrando as diferenças. Embora a moça tenha achado tudo “muito parecido”, entendeu as filigranas e deu o caso por encerrado.A cláusula fica! A harmonia daquele puteiro, digo, condomínio ia de vento em popa, parecendo cessar-fogo provisório entre o Hamas e o Hesbolah, até que a mulher do síndico resolveu levar para o prédio uma vaca holandesa, que o irmão ganhara numa rifa. Era uma ruminante bem-apessoada, convenhamos. Gorda, toda branca, com lindas manchas pretas que iam da cabeça à beira do cu. Os botafoguenses do prédio amaram a bicha de prima, batizaram a pobre por “Gloriosa” e a adotaram como mascote da corporação. A chegada da vaca no prédio causou um tal furdunço que parecia final de copa. A criançada correu pro play achando que era Papai Noel, e a galera do churrasco pegou o que pôde na geladeira e desceu pela escada mesmo, supondo que ia rolar um “churrasco comunitário” e tinham esquecido de avisar. A mulher do síndico não deu qualquer explicação a ninguém. Deixou a “Gloriosa” pastando serenamente a grama e as babosas dos jardins, e ficou ali, fazendo Sodoku, que é uma espécie de palavra cruzada, embora tenha esse nome assim, digamos, meio pornô. Era um domingo, se bem me lembro. Quando deu meio-dia, a mulher do síndico subiu pra temperar o macarrão do marido, e a mamífera ficou ali, pastando e cagando em tudo. De vez em quando, talvez saudosa da primeira-dama do prédio, mugia múúúúúúúúúúúú!, e soltava mais um monte de bosta. No fim da tarde, depois de encher o rabo de grama, quebra-pedra, tiririca, sacos plásticos, babosa, guimba de cigarro, modess, bouganvilles e antúrios, foi banhar-se na piscina, e ficou por ali mugindo e cagando um bom par de horas, até que encheu o saco e foi dormir na cantina. O quadrúpede foi o assunto do dia, mas logo aquele inesquecível domingo trouxe a noite e, com ela, as preocupações do amanhã. O povo esqueceu-se da coitada por algumas horas. Alguém lembrou-se da tal cláusula condominial e sugeriu a convocação de uma assembleia geral extraordinária pra decidir tão problemoso assunto. A dita assembleia foi convocada e se instalou numa quarta-feira à noite, se não me engano, e em grande estilo, como manda o judicioso ritual de uma reunião dessas. Providenciaram duas garrafas térmicas de café e alguns pacotinhos de clube social. O síndico abriu a sessão com voz cerimoniosa, empostada, lembrou a todos a importância de apreciar questão tão relevante para a vida comunheira e exortou os presentes a, de mãos dadas, fazerem uma oração para que o Nazareno iluminasse aquelas cabeças na tormentosa decisão. Não me recordo se alguém se lembrou de segurar a pata da vaca na hora dessa exortação ecumênica, mas embora o síndico tenha convidado a todos a se darem as mãos, e todos incluía o mamífero, um advogado cachaceiro disse que isso, isoladamente, não era causa de anulação de assembleia porque, “segundo a Constituição, o Estado brasileiro é laico”, e a vaca deixada fora da reza não interferiria no mérito da reunião. Pois bem. Feita a oração, como mandam as Sagradas Escrituras, o síndico pediu a todos “um minuto de silêncio” pelo passamento da dona Henriqueta, mulher do coronel Adamastor. A vaca não respeitou aquele momento de dor e foi discretamente advertida com um psssiiiiii! pela gostosona do 402. Constrangida, a mamífera cagou mais um pouco e, com o rabo, esparramou a bostice na parede do salão de festas. Ato contínuo, o síndico convidou a gostosa pra secretariar os trabalhos e deu inicio à efeméride. Alguém levantou uma questão de ordem. Queria saber se a vaca, presente aos acontecidos, teria direito a voto. O síndico disse que a convenção falava em “condôminos residentes, em dia com as prestações condominiais”, e não constava que a vaca, embora recém-residente, tivesse pago a sua quota. Não tendo havido objeção, comunicou-se formalmente ao bovino que seu voto não seria consignado, ao que a ruminante aquiesceu com um alongado múúúúúúúú, seguido de nova cagada que se espatifou no chão. A questão era de simplicidade franciscana ― ponderou o síndico ―: saber se a vaca podia ou não podia continuar no prédio. Iniciados os debates, todos querendo falar ao mesmo tempo com aquela costumeira “educação condominial”, a dona do bovino pediu uma questão de ordem. Concedida, disse:

― Se vocês decidirem que a vaca deve sair, eu saio junto!

E sentou-se, convicta de que tinha causado na patuleia impacto tão grande quanto a sua bunda se esparramando na cadeira. Novo alvoroço, novas marteladas do síndico na mesa, pedindo silêncio.

―Senhores! Senhores! ― a gostosona chamava a todos aos limites da urbanidade e da civilização ― Não se trata de decidir se a mulher do síndico deve ficar ou sair, dependendo da ficação ou da saição da vaca, mas se a vaca fica ou sai. Este é o busilis da questão!

O advogado pinguço levantou a mão, obteve a palavra e rematou:

― Data venia, colegas, “busilis” é expressão latina que significa, data venia, “ponto fulcral”, data venia, “âmago cognoscível”, data venia, “núcleo determinante do argumento essencial e incontornável, data venia”.

― Numa palavra ― remendou de lá um daqueles maconheiros do bloco III ―: “o bagulho que interessa!”

E com essa explicação providencial todos, finalmente, alcançaram a beleza do busilis da gostosona, que, por sinal, era muito cobiçado pela massa comunheira masculina. Chamando o feito à ordem, o síndico convidou os presentes a decidirem se a proibição de permanência de “animais vivos” nos apartamentos incluía a impossibilidade de se manter a vaca nas “áreas comuns”. Feitas essas colocações, passou-se à votação. Um a um os condôminos foram depositando os votos numa urna feita de papelão das Casas Sendas, lacrada na presença de todos. À medida em que votavam, assinavam a lista e voltavam a sentar-se, aguardando o final do escrutínio. Terminado o depósito dos votos, e respondida com aceno de cabeça à pergunta da gostosona se “todo mundo já votou?”, o síndico abriu a urna, contou os votos, confrontou com o número de assinaturas dos presentes e informou que, com exceção da vaca, todos haviam votado. Ele não votara porque, como síndico, e segundo o art. 8º da convenção, tinha “voto de Minerva”, isto é, só votava em caso de empate. O advogado cachaceiro pediu a palavra pra explicar quem foi “Minerva”, mas alguém gritou de lá “cala a boca, pinguço!”, e o sujeito fechou a matraca. Em seguida, o síndico pediu à gostosona do 402 que recontasse os votos, o que a beldade fez com fina simpatia e muito veludo na voz.Achou exatos. Tudo foi rigorosamente lançado em Ata, pra que depois neguinho não viesse de trololó. Deu empate! Era o que se temia! Sessenta e três condôminos acharam “normal” a vaca ficar perambulando e cagando pelo prédio e 63 acharam que não havia nada de mais em que a vaca escafedesse dali, ou virasse churrasco comunitário. Como a questão inicialmente colocada pela mulher do síndico foi a de que ela sairia do prédio se a vaca saísse, o síndico propôs outra questão de ordem:
― Que tal se decidíssemos entre a permanência da vaca ou a da minha patroa?

Toparam! Feito novo escrutínio, o quadrúpede ganhou de goleada: 126 votos a favor da vaca. Até a mulher do síndico votou a favor da vaca, pois não entendera a profundidade da questão.Alívio geral. No dia seguinte, a mulher do síndico saiu bem cedinho, levando uma malinha de bugigangas, dois carnês do Baú da Felicidade e uma muda de roupa. Nunca mais foi vista! O condomínio deu a questão por encerrada. O síndico, todo dia, às seis da tarde, recolhia o quadrúpede com carinho, pelo elevador social, e o acomodava ternamente no quarto do casal, depois de lhe dar uma apetitosa bacia de alfafa argentina, granola com açaí e paçoca de aipim. De madrugada, ninguém mais conseguiu dormir com tantos múúúú, múúú, múúú da pobre vaquinha, e alguns gemidos muito suspeitosos do síndico, mas o pessoal concluiu que o animal simplesmente estava estressado pelo estranhamento da nova posição de primeira-dama, digo, do novo ambiente, ou o síndico voltara a sofrer de prisão de ventre. Tempos depois dessa inesquecível assembleia geral, a “Gloriosa” deu a luz a um lindo bezerrinho, todo pintadinho, pimpãozinho, gordinho, alegrinho, cheinho de pintinhas pretinhas que iam da cabecinha até o cuzinho. Uma gracinha de garrotinho! As más línguas condominiais começaram a insinuar que, visto assim, meio de soslaio, o bezerrinho era a cara do síndico, mas isso era pura maldade de quem não tinha o que fazer. Esses fofoqueiros deviam pagar o condomínio em dia e se preocupar mais com suas próprias vidas, e não com a vida dos outros. Nesse ponto, dou razão à gostosona do 402:
― Se faz gosto, deixa o cara. Ô, raça do cacete!
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1.O autor é Juiz do Trabalho no Rio de Janeiro(7ª Turma). Na convenção do seu condomínio está escrito que é expressamente proibido jogar pela lixeira “cachos de banana verde”, o que, segundo a boa exegese, o autoriza a jogar pela indigitada lixeira cachos de banana madura, ou jacas, melancias, abóboras caipiras, sofás, pneus de bicicleta, geladeiras e restos de isopor daqueles que se tira quando descasca televisão de plasma comprada no Ponto Frio ou na Casa &Vídeo.
2.Ilustração:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjW352Gbzw0HFAHGJTO2ca5S3ULsj7A78OM18VcUSUvgf82cD3xKXo84N58tQ8im0LqL6sEkkbuvZN5jiGTQGUG4Y3ToIlYTZLYbKaoaitr0mbWGON87mu4yFIYsF_380VPpZHEoqk7-rXI/s400/vaca+deitada.jpg

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